1958: Cacilda Becker, então a maior atriz do Brasil veio a Belo Horizonte com sua companhia de Teatro, junto com marido Walmor Chagas e grande elenco. Iriam apresentar o espetáculo Maria Stuart, de Frederich Schiller, no Teatro Francisco Nunes.   Um ator que fazia o papel de um confessor de Maria Stuart não pode vir para BH. Cacilda convidou Jota Dângelo para fazer este papel. Dângelo já era conhecido no meio artístico. Acompanhava as temporadas dos repertórios de grandes companhias, como a de Paulo Autran, Tônia Carreiro e Adolfo Celi. Também já se consagrava como autor, ator e diretor do Show Medicina, que já estava na sua quinta edição. Sem contar sua luta pela criação do Teatro Universitário em Belo horizonte. Vejam que felicidade: contracenar, aos 27 anos, com a grande atriz Cacilda Becker, dirigido por Ziembinski. O sucesso de sua participação foi tão grande que ao final da temporada Cacilda fez uma oferta a Dângelo: ser contratado como ator e médico da Companhia. Teatro ou Medicina? Dângelo recusou. Escolheu permanecer como professor da Faculdade de Medicina.

Dângelo nasceu em São João Del Rey, em 6 de setembro de 1931,

Filho de Gonçalo Rafael Dangelo, general do Exército, e Hilda Silva Dangelo.

Estudou no colégio Santo Antônio de São João Del Rey, onde era aluno interno. Lá recebeu sólida formação humanística e teve os primeiros contatos com o teatro. Na biblioteca do colégio, de grande acervo, leu Corneille, Racine e Moliére, dramaturgia adotada nas aulas de francês. E também as tragédias e comédias de Shakespeare, adotadas nas aulas de inglês. Fez parte do Grêmio Literário, do Canto Orfeônico e do Grupo Teatral do colégio. Sob a direção dos frades franciscanos, Dângelo interpretou o personagem Capitão Stanhope, de um clássico da dramaturgia inglesa do começo do século XX, Journey´s End.

Quando se mudou para Belo Horizonte, aos dezoito anos, em janeiro de 1950, trazia o germe do teatro que o havia contaminado irremediavelmente.

Naquele ano fez vestibular e entrou para a Faculdade de Medicina. Graduou-se em 8 de dezembro de 1955.

Dângelo se preparava para se tornar cirurgião geral. Trabalhava na equipe de cirurgia do dr. Walter Boechat, no Hospital Vera Cruz. Tinha oportunidade de voltar para São João Del Rey, como cirurgião. Porém, em fevereiro de 1956 foi convidado pelo Prof. Liberato João Afonso DiDio, catedrático de Anatomia na UFMG, para ser seu assistente em tempo integral e dedicação exclusiva.

Vários fatores influenciaram a decisão de Dângelo de aceitar o convite do Prof. Didio. Dângelo pertencia à Geração Complemento, como ficou conhecida a tribo eclética de intelectuais, jornalistas, escritores e poetas de início de carreira. Gente como Afonso Romano de Sant´Anna, Ivan Ângelo, Silviano Santiago, Klauss Vianna, Maria Lúcia Machado, Ronaldo Brandão, Geraldo Magalhães e tantos outros. Do teatro, Carlos Kroeber, João Marschner, Italo Mudado, Isabel Câmara e Mamélia Dornelles. Resolviam todos os problemas do mundo em tertúlias nos bares Polo Norte, Palhares, Pinguim, Alpino, Tran-Chan e no Marrocos, na praça Raul Soares.

Além disso, o teatro. Em 1954, Dângelo cursava o quinto ano de Medicina quando foi convidado pelo Diretório Acadêmico Alfredo Balena para organizar uma atividade cultural para celebrar suas novas instalações. Impulsionado por seu colega de turma, José Menotti Gaetani, que é primo do acadêmico Pedro Raso e, portanto, meu primo também, Dângelo foi parar na sala de trabalho do prof. DiDio, que animado com a ideia falou sobre um espetáculo organizado pelos estudantes da Usp, em São Paulo, chamado Show Medicina. Nas palavras do próprio Dângelo, o professor Didio “com a extroversão de um comediante e o entusiasmo febril de um adolescente “encenou” alguns quadros daquele espetáculo paulistano”. Assim nasceu o Show Medicina, que Dângelo dirigiu e atuou até 1962.

Ao aceitar o convite do professor Didio para se tornar professor de anatomia, em tempo integral e dedicação exclusiva, Dângelo passou a fazer parte de uma escola de anatomistas que alinhava docência com pesquisa. Trata-se da escola boveriana. O professor DiDio, antes de se tornar catedrático de anatomia na UFMG, era professor da Universidade de São Paulo, discípulo do Professor Renato Locchi. Locchi foi o fundador da Sociedade Brasileira de Anatomia. Ele fazia parte da primeira geração de discípulos do professor italiano Alfonso Bovero. Bovero aceitou o convite para deixar sua cátedra de anatomia da Universidade de Gagliari, na Sardenha para assumir a mesma cátedra na Universidade de São Paulo, em 1914. Sua missão era a de organizar o departamento de anatomia da jovem escola médica paulista. Tem início a “fase boveriana da anatomia brasileira”, inserindo no currículo médico o estudo da anatomia com dissecção de cadáveres. Bovero trouxe a experiência nas técnicas de conservação a seco que aprendeu na Itália e na Alemanha e impôs um novo rigor no ensino e na pesquisa da anatomia.

Fruto dessa linhagem, Dângelo iniciou uma carreira brilhante e meteórica, como professor.

Da graduação em 1955 a professor assistente em 1956. Fez livre docência em 1957 e doutoramento em 1958. Em 1963 é chefe de Departamento, substituindo o prof. DiDio, que havia se mudado para os Estados Unidos. Em 1964 tornou-se Professor Titular.

Sua tese de livre docência foi: Estudo anatômico da inervação do M. Pronator Teres

Sua tese de doutoramento foi: Estudo anatômico das ‘áreas’ e ‘zonas’ do pericardium: distâncias entre o N. phrenicus e elementos do pedículo pulmonar.

Em 1962 e 63 fez especialização em Microscopia Eletrônica na Washington University, St Louis, Mo. Nos Estados Unidos.

Durante a vida acadêmica publicou uma série de trabalhos de pesquisas em revistas especializadas   inclusive na Ultrastructure Medical Review.

Traduziu os textos do Atlas de Anatomia de Sobotta e Becher.

Com Carlo Américo Fattini publicou, pela Editora Atheneu, três livros de Anatomia, o mais completo deles, Anatomia Humana Sistêmica e Segmentar, adotado em Faculdades de Medicina de todo o país, está em sua terceira edição.

Paralelo à sua atuação como professor da UFMG Dângelo escreveu, dirigiu ou atuou em mais de 70 peças de teatro:), “Pelos Caminhos de Minas”, “Noel, o Feitiço da Vila”, “O Aleijadinho de Vila Rica”, “Os Riscos da Fala” (com Paulinho Assunção e Ronald Claver), “O Caminho das Pedras Verdes”, “Essas mulheres e seus homens maravilhosos”, “ A Conjuração”, “À benção, Vinicius! ” e “A paixão segundo Shakespeare”. Além disso participou como ator em vários filmes: Vinho de Rosas, de Elza Cataldo; Uma professora muito maluquinha, da obra homônima de Ziraldo, sob a direção de André Alves Pinto e César Rodrigues e A Ética, de Pablo Villaça.

Mas nada se compara ao sucesso da peça OH, OH, OH Minas Gerais, que Dângelo escreveu com Jonas Bloch. O ano era 1968. A peça fez grande sucesso em Belo Horizonte e em todas as cidades por onde foi apresentada. Filas para se comprar ingressos. Finalmente atores bem pagos, casa cheia e críticas elogiosas. A nata a sociedade queria assistir à peça. Até Juscelino Kubtischeck esteve na plateia e ofereceu um jantar para o elenco após o espetáculo. Era época de plena ditadura. Quando a peça foi encenada em Brasília, a censura quis cortar uma cena em que Dângelo e Jonas liam uma carta que Juscelino escreveu no exílio, na véspera do Natal em Nova York. O fundo musical era a música Peixe-vivo, que identificava o autor da carta. A censura foi taxativa: ou a música ou o texto. Os dois juntos estavam proibidos. Dângelo preferiu cortar a música. Mas fez o maior estardalhaço na imprensa que deu cobertura total com matérias sobre o corte imposto ao espetáculo. Na encenação daquela noite, quando Dângelo e Jonas começaram a ler a carta, a plateia começou a cantar “Peixe Vivo”. De princípio uma ou duas vozes sussurraram como rastilho, até que toda a plateia no teatro lotado cantasse: “como poderei viver sem a sua, sem a sua, sem a sua companhia”. Como disse Dângelo, foi “de arrepiar”. Mas, exatamente no fim daquele ano, em 13 de dezembro, o AI-5, promulgado, proibiu Oh! OH! OH! em todo o território nacional.

Dângelo, consagrado no teatro pelo público, pela crítica e por seus pares, teve outras oportunidades para trocar a medicina pelo teatro. Mesmo com tanto sucesso nos palcos, Dângelo permaneceu fiel à sua função de professor de Medicina, exercendo a profissão até sua aposentadoria, em 1985.

Em 2008, meu grupo de Teatro, Cara de Palco, homenageou Dângelo e seu sucesso com a remontagem de OH OH OH Minas Gerais. 40 anos depois, o ator que leu a carta de Juscelino foi aplaudido em cena aberta.

Dângelo é casado com Maria Amélia Dornelles Dângelo, sua Melinha. Tiveram três filhos: Paulo Rodrigo, engenheiro, casado com Adriana Timburibá, lhe deu dois netos: Vitor e Rodrigo;

André Guilherme, arquiteto, casado com Vanessa Brasileiro têm dois filhos: Mariana e Guilherme

E Virgílio Oswaldo, artista, que infelizmente morreu precocemente, deixa sua filha Clara.

Dângelo é torcedor do América Mineiro, mas seu time de coração é o Botafogo.

Dentre sua trajetória de serviços prestados à cultura, destacam-se: Primeiro presidente da CONFENATA (Confederação Nacional do Teatro Amador); Membro do Conselho Estadual de Cultura de 1978 a 1982; Superintendente da Fundação Clóvis Salgado em 1983, quando criou o Teatro Ceschiatti no Palácio das Artes; Secretário Adjunto de Cultura em 84 e 85; Secretário de Estado da Cultura em 85 e 86; Presidente da Belotur de 1989 a 1992; Diretor Presidente do BDMG Cultural de 2003 a 2011; membro do Conselho Estadual de Política Públicas de 2012 a 2014 representando setor de Artes Cênicas de Minas.

Com Mamélia Dornelles fundou, a Casa de Cultura Oswaldo França Junior, que atuou na área cultural, especialmente teatral, em Belo Horizonte e interior de Minas até o ano 2000.

Foi agraciado com a Medalha Santos Dumont, Medalha do Mérito Legislativo Estadual de Minas Gerais, Medalha Tiradentes e Medalha da Inconfidência.

Hoje a Academia tem um momento especial. Dângelo ocupará como membro honorário a vaga deixada por seu grande amigo, Ângelo Machado, parceiro no Show Medicina. Vários de nossos confrades participaram do Show Medicina como os Drs. Ernesto Lentz, Enio Cardillo, Evaldo Assunção, Naftale Katz e Walter Caixeta.

Para Dângelo, Ângelo Machado é mais que um parceiro e amigo. É um verdadeiro irmão. A admiração era recíproca.

Dângelo Autor, ator, diretor, carnavalesco, compositor, cronista, gestor e sobretudo Professor.

Como diz Afonso Romano de Sant´Anna, “quantos Dângelos em um só José?”

Querido Dângelo, mestre é aquele que nos inspira, nos ensina e mostra caminhos. Amigo é aquele que está ao seu lado no caminho escolhido. Tenho o privilégio de ter como amigo o mestre que foi fundamental para minha formação.

A Academia Mineira de Medicina, ao escolher seu nome como membro honorário ocupando o lugar de Ângelo Machado acerta duplamente no cumprimento de suas finalidades: promove o engrandecimento cultural dos seus membros e da comunidade e preserva a história e a memória da medicina.

Seja muito bem-vindo.