Jorge Fernando dos Santos

“Sob o céu de Belo Horizonte” deveria ser lido por todos aqueles que amam ou que simplesmente vivem na cidade

 

Com 125 anos de vida e 2,722 milhões de habitantes, Belo Horizonte ainda mantém a aura provinciana de cidade do interior. Exemplo disso é o fato de desconhecermos boa parte das obras artísticas que nela foram inspiradas. Por outro lado, artistas de fora encontram aqui um nível de recepção nem sempre alcançado em outras partes do país. “Nossa vocação é o tapete vermelho”, dizia o saudoso escritor Bartolomeu Campos de Queirós, à guisa de explicação.

Para se ter ideia, a capital mineira já foi citada em mais de 200 canções em quase todos os ritmos musicais. A maioria delas, no entanto, jamais tocou no rádio. Além disso, a cidade inspirou uma vasta produção literária, como nos mostra Pedro Rogério Couto Moreira, no livro “Sob o céu de Belo Horizonte”. A exemplo de Bartolomeu, ele é membro da Academia Mineira de Letras e profundo conhecedor da literatura universal.

O autor define o próprio livro como um diário de leituras, tendo como fio condutor romances e livros de memórias, todos de escritores de sua predileção que retratam a cidade natal, do arrasamento do Curral del Rey em 1894 aos dias de hoje. Trata-se, portanto, de um olhar sobre os olhares sobre a cidade, começando pelo primeiro romance nela inspirado e nela publicado em 1904, “A Capital”, de Avelino Fóscolo.

Triângulo amoroso

Cunha, Lená e Sérgio formam o triângulo amoroso imaginado pelo romancista. Pelo olhar dos três, ele testemunha a construção da cidade, as pressões sofridas pelos antigos moradores do arraial e a cobiça dos especuladores imobiliários. Um personagem de fundo chama a atenção para “a ladroeira e a pouca vergonha campeando impunes”. Pedro Rogério tenta identificar os personagens de Fóscolo e decifrar o rarefeito panorama toponímico do romance.

“A imagem dos primeiros anos de Belo Horizonte já inaugurada e com alguma vida urbana, registrada por Avelino Fóscolo, é desalentadora”, conclui o autor, exemplificando com um trecho de “A Capital”: “… o canal [o Acaba Mundo] da grande avenida [a Afonso Pena] inacabada, obstruído, já em ruínas no alvorecer da existência e por toda a parte, como um

sudário imenso, a luz empalidecida do Sol coando-se por entre nuvens, afogando em ondas de melancolia a Capital – envelhecida ao nascer, com a pacatez das velhas cidades coloniais”.

Mas a melancolia não é o único tempero de “Sob o sol de Belo Horizonte”. Há lugar para diferentes sabores em momentos diversos, na análise dos livros “Memórias de um chauffer de praça”, de Moacyr Andrade; “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos; “Juventude, juventude”, de Odin Andrade; “Quietude, melancolia” e “O cabo das tormentas”, de Eduardo Frieiro; “O encontro marcado”, de Fernando Sabino; “Prisioneiro do círculo”, de Ricardo Gontijo; e “Hilda Furacão”, de Roberto Drummond.

O traçado do tempo

Vale ressaltar a maneira como o “leitor voyer” Pedro Rogério entrelaça histórias e personagens de obras tão distintas. Seu livro não só atiça o interesse pelos títulos analisados, como também refaz o traçado do tempo sobre a planta baixa idealizada por Aarão Reis para aquela que seria a quarta cidade planejada do país, primeira da República. Filho do acadêmico Vivaldi Moreira, o autor foi balconista na Livraria Itatiaia, do tio Edson Moreira, e ali conviveu com vários dos escritores agora revisitados em seu livro. Outro tio seu foi Pedro Moreira, dono das editoras Itatiaia e Garnier.

Pedro Rogério também cita poetas, cronistas e jornalistas que marcaram época na infância e na mocidade de uma BH pacata e quase bucólica. Merecem destaque Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos, Pedro Nava, João Etienne Filho, Benito Barreto e Otto Lara Resende, entre outros. Impressiona a memória literária do autor, bem como sua capacidade de nos conduzir pelos intricados labirintos da historiografia local sem se render ao academicismo.

Por essas e outras, “Sob o céu de Belo Horizonte” (publicado em 2020, pelo selo Thesaurus), deveria ser lido por todos aqueles que amam ou que simplesmente vivem na cidade. Muito bem escrito, o livro prende o leitor desde as primeiras páginas, reconstruindo lugares e a psicologia de personagens que marcaram época. De certa forma, reafirma a importância da capital mineira no âmbito da literatura nacional, como berço de grandes autores e cenário de histórias verdadeiramente humanas.

 

Disponível em: https://domtotal.com/artigo/9853/2022/02/diario-de-leituras-de-um-leitor-voyer/