A bússola aponta para o Leste

                                                                       Vera Lúcia de Oliveira

            Nem toda bússola aponta para o Norte. A de Franz Ritter, personagem do romance Bússola, (SP: Todavia, 1918), do premiadíssimo escritor francês Mathias Énard, aponta para duas direções: para o Oriente e para o coração da amada, Sarah.

O doutor Franz, professor da Universidade de Viena, especialista em música, erudito apaixonado pelo Irã e pela cultura milenar do Oriente, conhecedor da cultura persa, pesquisador de música oriental, encontra a também pesquisadora Sarah, cabelos cor de fogo, que vai incendiar o seu coração. Sarah é uma erudita brilhante, brilhantíssima como as areias do deserto. E chegar até ela é percorrer um grande labirinto cheio de armadilhas. Enfeitiçou Franz. Enfeitiçado, muito doente e insone, no apartamento em Viena, nos conta a sua aventura numa longa jornada noite adentro que se inicia às 23h10 e vai até às 6h00, nesse extenso e denso romance em que Énard nos dá de presente um mundo inteiro de cultura e erudição. Livro que pede um passo a passo, como por exemplo, abrir um vinho Shiraz, baixar na internet a Ode sinfônica da ópera O deserto, de Félicien David, deixar à mão Salambô, de Flaubert, o Divan Ocidento-oriental, de Goethe, o Rubáiyát, de Omar Khayyám, ao lado do Opiário, de Fernando Pessoa, pois muito conversam e também estão na história. Em seguida, navegar nas mil e uma noites da poesia que vem do Oriente, enchendo-se de magia, e conhecer a história que desembaraça os fios das influências literárias.

Franz nos mostra Viena, porta do Oriente que viveu o cerco otomano e a batalha de Mogersdorf e que guarda no “Rondo alla turca”, de Mozart, estreita relação com as centenárias fanfarras turcas; e fala de sua estada em Istambul, cujo objetivo era pesquisar “a música europeia do século XIX e XX, Liszt, Hindemith e Bartók no Bósforo, de Abdulaliz a Atatürk, projeto do qual eu estava muito orgulhoso e que ia resultar no meu artigo a respeito do irmão de Donizetti, Giuseppe, como introdutor da música europeia nas classes dirigentes otomanas (…)”. Mas Franz, agora desiludido, pergunta-se qual o valor desse trabalho, ainda mais porque está associado à imagem de Sarah, que não vem. Dessa forma, só, depressivo, descontente de tudo, sobretudo de si mesmo, diminui a sua importância e diz que é apenas um filhinho da mamãe, obediente, precavido, com a mala cheia de remédios, botões, linhas e agulhas. Mas não é bem assim. A sua pesquisa é extraordinária. Conta-nos de modo crítico como a Europa solapou a Antiguidade dos sírios, dos iraquianos, dos egípcios, extorquindo, pilhando desde a campanha de Napoleão, ajudada pelos descerebrados demolidores islamitas do Afeganistão que o mundo, estarrecido, viu recentemente pela TV, assim como o horror das cabeças cortadas pelos jihadistas inimigos da liberdade e da vida.

E a viagem continua em suas lembranças:

Éramos uns príncipes, príncipes do Ocidente que o Oriente acolhia e tratava como tais, com requinte, obséquio, suave langor, e esse conjunto, conforme à imagem que nossa juventude construíra do mito oriental, nos dava a impressão de habitar enfim nas terras perdidas das Mil e uma noites, reaparecidas só para nós: nenhum estrangeiro para estragar a exclusividade (…) (Pág. 167)

Esse Oriente do ópio, do alaúde, do perfume de sândalo, do erotismo, das dançarinas sedutoras, das Sherazades maravilhosas, dos bazares, atraiu escritores e poetas como Flaubert, Rimbaud e Baudelaire, aventureiros, exploradores, peregrinos e muitos outros que sonharam com as Zuleikas e Lailas, com o exótico, o suntuoso e o distante, num desejo evidente de fuga da rígida Europa. Sem esquecer o lendário guerreiro T.E.Lawrence, imortalizado por Peter O’Toole em “Lawrence da Arábia”, filme extraordinário de David Lean, de 1962. Mergulhado nessa lembrança, Franz recorda todo um mundo de viajantes e músicos que ligam o Oeste e o Leste, sobretudo o belo e errante Franz Liszt (que Baudelaire chamou de filósofo e poeta), gênio absoluto da música que fazia chorar os homens e desmaiar as mulheres e que, a convite do sultão, em 1847,  foi a Istambul, onde deu famosos concertos e reavivou talvez a sua luz na daquele Oriente que, segundo Franz, “revolucionou a arte, as letras e a música, sobretudo a música.” E numa observação surpreendente sobre esse sonho com o Oriente, diz:

Há até mesmo uma corrente fértil que se constrói sobre esse sonho, sem precisar viajar, cujo representante mais ilustre é com certeza Marcel Proust e seu Em busca do tempo perdido, coração simbólico do romance europeu: Proust faz das Mil e uma noites um de seus modelos – o livro da noite, o livro da luta contra a morte. Como Sherazade luta toda noite, depois do amor, contra a sentença que pesa sobre ela contando uma história ao sultão Shahryar, Marcel Proust pega toda noite sua pena, muitas noites, diz ele, “talvez cem, talvez mil”, para lutar contra o tempo. Mais de duzentas vezes na obra de Proust faz alusão ao Oriente e às Noites, que ele conhece nas traduções de Galland (a da castidade da infância, a de Combray) e de Mardrus (a mais suspeita, mais erótica, da idade adulta) – ele tece o fio de ouro do maravilhoso árabe ao longo de todo o seu imenso romance; Swann ouve um violino como um gênio que sai de uma lâmpada, uma sinfonia revela “todas as pedrarias das Mil e uma noites”. Sem o Oriente (esse sonho árabe, em persa e em turco, apátrida, que se chama Oriente), nada de Proust, nada de Em busca do tempo perdido. (Pág. 172).

Bússola nos fala, portanto, da paixão de Franz pelo Oriente, das incontáveis relações de escritores e artistas europeus com essa região de sonho – desde a possível presença de Michelangelo em Istambul, em 1506, romanceada no ótimo livro desse autor Falem de batalhas, de reis e de elefantes (2010) -, e sobretudo daqueles da primeira metade do século 19, entrelaçando a narrativa com a paixão por Sarah, a dos cabelos de fogo.

Assim, com a segurança e o conhecimento de orientalista, Énard nos leva a Istambul, Alepo, Damasco, às ruínas de Palmira, à Teerã e à montanha de Shiraz, sempre no tapete voador de Aladim, seguindo a curiosa bússola de Beethoven que só apontava para o Leste. E se pergunta: “Quando terei minha amada em meus braços?”