O Estado Democrático de Direito emerge no contexto histórico dos paradigmas constitucionais que remontam às revoluções liberais do fim do século XVII, com a chamada Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688/89), e do século XVIII, especialmente com a Declaração de Independência das 13 colônias inglesas que se constituíram nos Estados Unidos da América (1776) e com a Revolução Francesa (1789/99). Temos, então, a Constituição liberal, fundada na liberdade e nos direitos individuais, no direito de propriedade sem limites e na liberdade contratual também sem restrições.
O liberalismo econômico, como modelo constitucional e fundamento do Estado, atravessou o século XIX.
O clamor por uma nova ordem que incorporasse as reivindicações dos pobres e as lutas das classes trabalhadoras na busca dos direitos trabalhistas e previdenciários, além de outros direitos sociais como os de acesso aos bens da educação e da cultura, dos cuidados preventivos e curativos de saúde, começou a ser timidamente acolhido nos últimos anos do século XIX. Encontrou maior e mais forte ressonância durante e após a Primeira Guerra Mundial (1914/1918), com a Revolução Russa em 1917. A Constituição mexicana, também de 17, e a Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1919, iniciaram a era das constituições e do Estado do bem-estar social que se desdobra em três submodelos: um à esquerda, com as experiências comunistas; outro à direita, com o nazismo, o fascismo e outras experiências autoritárias corporativistas como o Brasil do Estado Novo; ao centro, preservando valores democráticos, as experiências de países europeus com a social-democracia, especialmente os países nórdicos – Suécia, Dinamarca, Noruega.
O Estado Democrático de Direito que emerge nos anos 1970 e 1980, inspirando inclusive os constituintes brasileiros que elaboraram a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, aperfeiçoa o Estado do bem-estar social ao reafirmar o valor dos procedimentos democráticos, abrindo e ampliando os espaços para a participação da sociedade e o exercício efetivo dos direitos e deveres da nacionalidade e da cidadania. Assegurando, enfim, a soberania popular. Busca uma nova e avançada síntese entre os direitos individuais e os direitos sociais, na afirmação dos direitos fundamentais. Reafirma os deveres do Estado de bem aplicar os recursos públicos, oriundos basicamente dos tributos pagos pela cidadania, para assegurar os direitos relacionados com as políticas públicas sociais – educação, trabalho, saúde, cultura, habitação, assistência social, segurança alimentar, enfim, os direitos que asseguram um patamar comum de oportunidades iguais e a expansão das vocações e potencialidades de todos os participantes da comunidade.
Se o Estado Democrático de Direito reafirma as responsabilidades do Estado na realização do bem comum e da justiça social, também abre espaços crescentes para que as pessoas e as comunidades étnicas – no Brasil, os indígenas, quilombolas e populações tradicionais – locais e regionais, num processo que se oferece gradualmente a toda a sociedade nacional, possam exercer a cidadania através de procedimentos relacionados com a democracia direta e a democracia participativa.
Encontramos essa clara orientação doutrinária em vários princípios e normas de nossa Constituição. Recordemos algumas passagens:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores essenciais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
(…)
Art. 14 A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.
(…)
Art. 61 (…)
§ 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
(…)
E ainda o inciso VII do artigo 194, que trata da seguridade social, determina que o Poder Público organize a seguridade social baseado, entre outros objetivos, no “caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”.
As diretrizes constitucionais se traduziram em exitosas experiências de participação popular, como o Orçamento Participativo que implantamos ao governar Belo Horizonte. Infelizmente, essas experiências de planejamento e de orçamento participativos não tiveram desdobramentos nos planos estadual e nacional. E, no plano municipal, recuaram e praticamente deixaram de existir.
Tivemos, também com inspiração e apoio no texto constitucional, os conselhos e as conferências setoriais que se organizam a partir dos municípios e estados e em torno de temas – educação, saúde, cultura, assistência social, alimentação – ou de seres humanos que demandam maior proteção do Estado e da sociedade – pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, idosos, mulheres.
O paradigma do Estado Democrático de Direito incorpora os movimentos sociais, as entidades sindicais com seus espaços de liberdade e autonomia, movimentos de juventude… Busca, enfim, ampliar os espaços de organização e de participação da sociedade em todos os níveis, setores e territórios.
Por um desses paradoxos que marcam a caminhada histórica da humanidade, o Estado Democrático de Direito encontra um feroz opositor no neoliberalismo que surge a partir dos anos 1970, se estende aos nossos dias e se traduz na livre expansão do capitalismo selvagem, no retorno aos princípios e práticas do século XIX fundados no Estado mínimo e na liberdade sem limites do poder do dinheiro – este a referência suprema de todas as coisas. Um retorno, em resumo, à metáfora bíblica do bezerro de ouro.
O Estado Democrático de Direito e a volta do liberalismo econômico – expressão elegante para escamotear o capitalismo selvagem e a lei do mais forte – disputaram espaços, corações e mentes, nos últimos 30 anos, no Brasil.
Eu fui, simultaneamente, um ativo militante político e social e um estudioso do nosso país nesse período. Vereador eleito em Belo Horizonte em 1988, ano em que a Constituição foi promulgada, fui o relator da Lei Orgânica Municipal e procurei, respeitando as especificidades locais e regionais, adequá-la às diretrizes da Carta Magna.
Eleito prefeito da capital mineira em 1992, procurei, além de instituir o Planejamento e o Orçamento Participativos e de implantar os conselhos municipais, cumprir as diretrizes constitucionais no campo das políticas públicas. Assim, consolidamos em Belo Horizonte o Sistema Único de Saúde e implantamos o Sistema Único da Assistência Social. À exigência constitucional de aplicação de 25% do orçamento em educação respondemos elevando aquela exigência, na Lei Orgânica, para 30%. E dedicamos prioritária atenção, entre outras áreas, à cultura e à segurança alimentar.
No Governo Lula, fui responsável pela implantação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Ali viabilizamos o Programa Bolsa Família integrado com as políticas da assistência social que, nos termos da Constituição, faz parte da Seguridade Social, e da segurança alimentar.
Respeitando as opiniões contrárias e divergentes, penso que avançamos, a partir de 2003, com as políticas públicas sociais e de combate à pobreza extrema e à marginalização social, na perspectiva dos ideais norteadores do Estado Democrático de Direito para a inclusão e a seguridade social. O Brasil começou a entrar, tardiamente, na era do Estado do bem-estar social, respeitando e promovendo os direitos fundamentais e os espaços participativos da sociedade que conformam o Estado Democrático de Direito.
Este processo foi interrompido com o afastamento, sem fundamentação jurídica, da presidente Dilma Rousseff – o que configurou um golpe de Estado. Reaparece, com toda sua força, o neoliberalismo; começa, com toda força, a operação desmonte dos direitos e conquistas sociais que tivemos nos últimos anos com fundamento na “Constituição Cidadã” de 1988.
Entre os exemplos mais visíveis e determinantes do novo momento político e jurídico que passamos a viver está a Emenda Constitucional 95, a chamada emenda do teto dos gastos, que congela o Brasil por 20 anos e condiciona à taxa inflacionária do ano anterior todos os investimentos em obras de infraestrutura e em políticas públicas. Significa que, se tivermos um quadro excelente de crescimento econômico e inflação baixa, continuarão travados os recursos que poderiam promover o desenvolvimento integral e sustentável do país.
A quem interessa uma situação estranha como essa? Para onde irão os recursos que não poderão servir à expansão das possibilidades do povo brasileiro? Tivemos depois a chamada reforma trabalhista que, a rigor, não é reforma, mas a fragilização completa do Direito do Trabalho. Submeter o Direito do Trabalho ao primado da livre combinação entre as partes e não ao primado da lei e do ordenamento jurídico, com clara subordinação aos princípios e normas constitucionais e às conquistas civilizatórias do Direito, é retroceder ao século XIX, aos tempos que antecederam os direitos sociais, aos tempos em que as relações de trabalho eram estabelecidas pela livre convenção entre as partes com fundamento nos princípios da pretensa autonomia da vontade e da liberdade contratual. É retroceder aos tempos que provocaram a frase profética e concisa de Henri Lacordaire: “Entre o forte o fraco é a lei que liberta; a liberdade oprime”.
Querem agora desconstituir o sistema previdenciário abrindo espaços crescentes – como fizeram com a Emenda 95 em relação à educação e à saúde – para o crescimento da previdência privada. O ataque sistemático, com apoio de poderosos órgãos de comunicação, aos direitos sociais, atingindo, sobretudo, os mais pobres e as classes trabalhadoras, mas também a classe média assalariada e ainda os micros, pequenos e médios empreendedores locais e regionais, estende-se, dramaticamente, à soberania nacional e, por via natural de consequência, à soberania popular. Assistimos à entrega da Petrobras e do pré-sal; à entrega dos nossos espaços aéreos a companhias multinacionais. Avançam agora na privatização do setor elétrico e, com ele, na entrega das nossas águas, bem essencial à vida como o ar e a terra e que vai se tornando, de forma trágica, um bem escasso.
Em face dessas medidas e de tantas outras que ferem fundo a soberania da nossa grande e querida pátria brasileira, que temos o dever de preservar para as gerações presentes e futuras, constituímos no Congresso a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional.
Sempre respeitando as opiniões diferentes, penso que o impedimento da presidente da República constitucionalmente eleita abriu um processo golpista que ainda não se fechou. Vivemos uma conjuntura incerta e carregada de desafios. Renomados estudiosos da realidade brasileira como Wanderley Guilherme dos Santos, em “A democracia impedida – O Brasil no século XXI”, e Leonardo Avritzer, em “Impasses da democracia no Brasil”, trabalham a crise atual no país numa perspectiva institucional que, além de suas dimensões éticas, econômicas e sociais, perpassa os três poderes da República e se ramifica, ainda que de forma diferenciada e ressalvadas as belas exceções, entre os três entes federados, além de perpassar outros espaços da esfera pública e amplos setores privados.
Professor na Faculdade Mineira de Direito e na Escola de Serviço Social da PUCMINAS à época do processo constituinte, estive entre aqueles que defenderam as prerrogativas do Poder Judiciário corroídas durante a ditadura pós-64. E estive também entre os que defenderam as garantias e a ampliação dos espaços de atuação do Ministério Público.
Hoje, no contexto da conjuntura que vai se traduzindo numa profunda crise institucional, questiono se não há, em setores do Poder Judiciário, do Ministério Público e também da Polícia Federal, uma exacerbação de suas funções. Questiono se é razoável o uso da delação premiada como está sendo praticada no Brasil, dissociada muitas vezes de provas documentais e com tão alargada redução de tempo das penas que se torna um grande estímulo para que os delatores lancem acusações sem amparo na verdade e na realidade dos fatos. E pergunto o que temos quando as motivações políticas prevalecem sobre as provas dos autos, os princípios e normas constitucionais e o ordenamento jurídico.
A atual conjuntura apresenta-nos mais um fato novo e preocupante: a intervenção militar no Rio de Janeiro, com desdobramentos e consequências imprevisíveis. Todos sabemos da gravidade e da urgência que os desafios da violência, dos homicídios e da ação perversa e desagregadora do chamado crime organizado impõem ao país. Sabemos da urgência de uma vigorosa política pública de segurança pública – certamente o problema mais urgente que o Brasil confronta. Mas vamos resolvê-lo com ações midiáticas e não planejadas? Sem serviços eficazes de inteligência e investigação para alcançar os verdadeiros responsáveis? Sem uma vigorosa proteção de nossas fronteiras terrestre, marítima e aérea? Sem ações bem articuladas e integradas com os governos estaduais e municipais, na perspectiva de um sistema de segurança pública como o SUS e o SUAS que constituímos?
Vivemos, enfim, uma conjuntura que ameaça seriamente os fundamentos do Estado Democrático de Direito. É um momento histórico que interpela as consciências bem formadas, comprometidas com a vida, com o bem comum, com a expansão dos melhores sentimentos e possibilidades humanas. Interpela, sobretudo, a consciência jurídica dos estudantes e professores do Direito; dos operadores e construtores do nosso ordenamento jurídico que sempre se renova não apenas pelas leis, mas também pelas interpretações bem fundadas e atentas ao que o notável papa João XXIII, hoje santificado pela Igreja Católica, chamou de “os sinais dos tempos”.
Não vamos ceder aos cantos das sereias das saídas ditatoriais ou autoritárias. Lembremos sempre a velha advertência da sabedoria grega: “A tirania é uma bela praça iluminada, mas sem saída”. Devora os próprios filhos. O caminho que se abre para nós, ainda que muitas vezes estreito, é o caminho da democracia, do respeito aos diferentes, da liberdade que se curva às exigências do bem comum e de convivência respeitosa e dialogante entre as pessoas; dos direitos fundamentais que buscam a construção mais elevada: da integração dos direitos e garantias individuais com os direitos sociais, os direitos difusos e coletivos, com a justiça social.
O Brasil é muito maior do que o momento obscuro e limitado que estamos vivendo. Busquemos no passado, nas lutas e conquistas do povo brasileiro, a força e a lucidez para compreendermos o presente e lançarmos no solo fértil e generoso da pátria as sementes do futuro. Sobretudo as gerações mais novas, as gerações dos estudantes aqui presentes têm um encontro marcado com a história. Peço-lhes, do fundo do coração tocado de amor pelo Brasil e sua gente: sejam fiéis a este encontro. Escrevam bem o seu nome nos anais da pátria. É o que nos dá paz de consciência e força para reafirmarmos, no entardecer da vida, como faço hoje, o velho refrão: a boa luta continua.
Por Patrus Ananias de Souza*, tesoureiro da Academia Mineira de Letras, ocupante da cadeira nº 29.
(*) Patrus Ananias é deputado federal (PT-MG)