Senhoras e senhores: minha oração é breve e começa por uma pergunta.

O que fazemos todos nós, nessa noite, em pleno século vinte e um, na sede de uma instituição fundada em 1909?

O que nos tirou do conforto de nosso lar ou das atividades regidas pelas tecnologias digitais e as redes sociais, marcas do nosso tempo?

Talvez a saudade de uma época em que as pessoas se encontravam de verdade, olho no olho, sem a mediação da tela do celular.

Afinal, a academia nada mais é do que um lugar de convivência real, fraterna, suave e elegante em torno do que satisfaz a nossa alma: a cultura, as artes, a educação, a história e a memória. Foi assim que as academias surgiram, ainda na Grécia Antiga, em 387 antes de Cristo, quando Platão resolveu fundar uma escola livre perto de Atenas, nos jardins dedicados a Academus. Tal prática se disseminou pela região e vigorou por novecentos anos. Em 529 depois de Cristo, por ordem do imperador romano Justiniano, todas as academias foram fechadas.

Com a renascença italiana, elas ressurgiram. Primeiro em Florença, em 1440, com a fundação da Accademia Platônica. Tempos depois, na França, na Espanha e em Portugal. Os bons ventos do Iluminismo, a partir do século dezessete, também foram fundamentais para garantir a elas uma posição mais segura.

Do outro lado do Atlântico, no Brasil colônia, houve a Academia Brasílica dos Esquecidos, e, depois, a dos Renascidos. A Academia Científica do Rio de Janeiro durou sete anos, até ser esvaziada por razões políticas. A Sociedade Literária do Rio de Janeiro, também do século dezoito, durou oito anos, até ser finalmente fechada, em 1794, acusada de participar de um movimento pela libertação da colônia, no episódio que ficou conhecido como a Conjuração Carioca.

No campo das Letras, a primeira academia republicana foi a cearense, surgida em 1894. A Academia Brasileira de Letras veio três anos depois, em 1897, fundada por Machado de Assis, Olavo Bilac, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, entre outros. Inspiradas em seu modelo, vieram a pernambucana de letras, em 1901, e a paulista de letras, fundada em novembro de 1909, um mês antes do surgimento da Academia Mineira de Letras, em 25 de dezembro, em Juiz de Fora, há cento e dez anos.

É a afeição pelo legado das gerações passadas que me leva a reverenciar pelo menos alguns daqueles que, antes de mim, tiveram a alegria de presidir essa casa.

Entre as vinte e uma personalidades que comandaram os destinos da Academia desde o seu surgimento, escolho citar Eduardo de Menezes, o presidente fundador. Nascido em Niterói, no Rio de Janeiro, graduou-se em Letras e em Medicina. Membro da Academia Imperial de Medicina, estudou na Europa com Pasteur e com Charcot. Em Juiz de Fora, para onde se mudou por motivo de saúde, fundou a Sociedade de Medicina e Cirurgia, a Escola de Farmácia e Odontologia e a Faculdade de Direito. Entre seus livros, estão “Cidade salubre”, de 1911, “A liberdade de ensino”, de 1913, “A revolução mineira de 1842”, de 1915, e “A ortografia fonética”, de 1919.

Mário Franzen de Lima foi o presidente que fundou a Revista da Academia Mineira de Letras, em 1922. Um dos criadores da entidade, foi um aclamado poeta parnasiano, assim como seu tio, Augusto de Lima, presidente de honra dessa Casa. Formado em Direito, Mário Franzen de Lima foi promotor de Justiça, advogado, jornalista e professor. Dirigiu a Imprensa Oficial e o Arquivo Público Mineiro.  Entre seus livros, figuram “Mito solar”, “Audiências de Luz” e “Dante e a divina comédia”.

Foi Heli Menegale o presidente que conseguiu a primeira sede própria da Academia Mineira de Letras em Belo Horizonte, viabilizada pela intervenção do prefeito da capital, Otacílio Negrão de Lima, em 1950. Nascido em Juiz de Fora, em 1903, Heli Menegale foi poeta, jornalista e servidor do Ministério da Educação e Cultura. Sua filha, Berenice Menegale, é, há décadas, uma das personalidades mais amadas da cultura de Minas.

José Oswaldo de Araújo presidiu a Academia entre 65 e 66. Nascido em Dores do Indaiá, foi banqueiro e prefeito de Belo Horizonte. No campo da cultura, lecionou na Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, foi poeta e jornalista. Um dos primeiros a identificar o gênio de Carlos Drummond de Andrade, escreveu, entre outros, “Canções de um sonho distante” e “Palavras que lembram momentos amáveis”. Seu neto, o acadêmico Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, é, reconhecidamente, uma das inteligências mais notáveis que Minas gerou para o Brasil, nos últimos tempos.

Vivaldi Moreira comandou a Casa de Alphonsus de Guimaraens a partir de 1975. Foi Vivaldi quem tornou possível a sonhada sede ao rés do chão para a Academia, dando a ela, finalmente, a dignidade merecida. Nascido em Tombos, em 1912, formou-se em Direito no Rio de Janeiro, onde também exerceu o Jornalismo. Chefe de publicações do Ministério da Educação, foi diretor da divisão de obras raras da Biblioteca Nacional e diretor geral da Imprensa Oficial de Minas. Em Belo Horizonte, atuou nos jornais “O Diário”, “Estado de Minas” e “Diário da Tarde”. Foi auditor e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Entre os livros de sua autoria, destacam-se “Navegação de Cabotagem”, de 1963, “O menino da Mata e seu cão piloto”, de 1982, e “O velocino de ouro”, de 1986.

Murilo Badaró sucedeu a Vivaldi Moreira, exercendo a presidência até 2010, quando faleceu. Deputado estadual e federal, secretário de Estado, senador da República, ministro da Indústria e Comércio e presidente do BDMG, entre seus livros destacam-se as biografias de José Maria Alkmim, Gustavo Capanema e Milton Campos.

Orlando Vaz Filho conduziu os destinos da Academia com a generosidade que lhe é peculiar, dispendendo, por várias vezes, recursos próprios para custear a sua manutenção. Orador de méritos reconhecidos nacionalmente, deputado estadual, secretário municipal de Educação de Belo Horizonte, diretor da Casa do Brasil na França e presidente da Hidrominas, é advogado de intensa atividade, em escritório partilhado com sua mulher, a brilhante professora doutora Isabel Vaz.

De perfil agregador, sorriso fácil e hospitaleiro, Olavo Celso Romano presidiu a Casa de Alphonsus de Guimaraens entre 2013 e 2016. Foi ele quem abriu as portas da Academia para o povo da cidade e do estado, para os artistas e para as crianças, a todos oferecendo programação interessante e acessível. Foi também quem modernizou e profissionalizou a gestão da entidade, sintonizando-a com as exigências dos novos tempos. Nascido em Morro do Ferro, formou-se em Direito, Inglês e Administração, com especialização em Planejamento Educacional. Procurador do Estado, é autor de vasta obra, em que realçam volumes como “Casos de Minas”, “Minas e seus casos”, “Dedo de Prosa”, “Prosa de Mineiro” e “Os mundos daquele tempo”.

Elizabeth Rennó, que administrou a Academia nos últimos três anos, é mineira de Carmo de Minas. Graduada e pós-graduada em Letras, é mestre em Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais, com dissertação sobre o poeta Ledo Ivo publicada pela Academia Mineira de Letras. Autora de vários livros, entre os quais “De Gil a João”, “Concha lua”, “Post Scriptum” e “Quatro estações mais uma”, foi presidente, também, da Academia Feminina Mineira de Letras e da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais.

À presidente Elizabeth somos todos muito gratos pelo empenho e pelo trabalho realizado em favor da casa.

Pois bem. Volto, agora, à pergunta inicial.

O que nos reúne aqui hoje?

Talvez a saudade de tempos mais humanos, mais ternos, mais delicados, mais gentis.

Outra resposta possível é a que move, com certeza, o coração de muitos de nós que aqui estamos hoje: o amor pela Cultura. Afeição que não admite meio termo ou evasivas, é – mais que um sentimento – uma decisão. E uma decisão essencial, vinculada ao sentido atribuído à própria existência. Quem ama a Cultura, pois, não a situa somente no plano do entretenimento. Faz mais: compreende em que território ela se estabelece. Conhece a sua força. E sela, finalmente, o compromisso em honrá-la como ela requer.

Pois a Cultura não é apenas um conjunto de representações artísticas da realidade. Ela é o solo a partir do qual os povos erguem as suas identidades, ordenam seus modos de ser e de viver, concebem suas visões de mundo e seus projetos de vida.

Cultura, portanto, não é favor, não é supérfluo, não é despesa, não é matéria secundária. É o solo fértil em que lançamos as sementes dos nossos sonhos.

Se o Poder Público se ausenta do investimento em Cultura, é porque certamente os seus dirigentes ainda não compreenderam o impacto que ela exerce sobre a educação, a economia e o desenvolvimento social.

Se há empresas que ainda não descobriram o imenso potencial da Cultura, é hora de fazê-las enxergar os imensos benefícios materiais e imateriais de que desfrutarão a partir dos aportes realizados.

Cultura é direito previsto na Constituição Federal. É fator de progresso e de inclusão. Nas sociedades contemporâneas, mobiliza extensas cadeias produtivas, gera emprego, renda, e, sobretudo, eleva os índices de felicidade e de alegria das populações que dela podem usufruir. A vida de quem produz e de quem consome cultura e arte tem mais cor e mais sabor, é mais intensa e, ao mesmo tempo, mais leve.

Para que vicejem, a cultura e a arte gostam dos terrenos da democracia verdadeira, da tolerância e da diversidade – sem ódio, sem preconceito e sem discriminação de qualquer natureza, seja ela de classe social, etnia, crença espiritual ou religiosa.

Se não encontram o ambiente mais apropriado; se, pelo contrário, se veem às voltas com o predomínio dos ignorantes, dos medíocres, dos truculentos e dos toscos, cabe à cultura e à arte não se acovardarem, exercendo o papel de resistência que, ao longo dos tempos, sempre desempenharam. Porque quem faz cultura e arte é, acima de tudo, corajoso, valente. Rema, muitas vezes, contra a maré, enfrenta desafios terríveis, de toda ordem, e precisa seguir em frente.

É sobre essa gente que falo agora. Rendo todas as homenagens aos pintores, aos escultores, aos artistas performáticos, aos músicos, aos bailarinos, aos chefes de cozinha, e, como é esperado de quem ocupa a tribuna dessa casa, aos poetas e aos prosadores. Sem esquecer daqueles que viabilizam a publicação e a repercussão de seu trabalho: agentes literários, revisores, editores, livreiros, professores, críticos, jornalistas e divulgadores culturais, estejam eles na universidade, na imprensa, na internet ou nas redes sociais.

Somos uma espécie encantada pelo fenômeno da linguagem. Se nos diferenciamos dos animais pela coluna ereta – dispensada, pela evolução, de arrastar-se pelo chão – e pelas mãos livres para trabalhar e para criar, também nos distinguimos pela faculdade de nomear as coisas e de atribuir significado a elas. Mais que isso: somos capazes de narrar, de contar histórias que interessam e sensibilizam. Expressão da alma que irrompe no corpo, a língua é um dos mais valiosos presentes que recebemos dos deuses, é o que nos permite ir da intenção ao gesto, do vago ao articulado, do murmúrio à palavra. Não há experiência que prescinda do verbo. Nada melhor, portanto, que cultivá-lo com o zelo merecido, respeitando o seu poder e rejeitando, com veemência, o seu uso leviano, irresponsável, tolo ou destrutivo, que afasta as pessoas umas das outras.

Também nos reúne hoje aqui o imenso apreço pela Língua Portuguesa, uma das razões que justificam a existência dessa academia. Legada pelos colonizadores portugueses – esses navegadores destemidos – ela cruzou o oceano para fincar raízes profundas entre nós.  Enriquecida pela contribuição dos que forjaram a nacionalidade brasileira, como os índios, os africanos e os imigrantes italianos, árabes e japoneses, entre outros, a última flor do lácio é o universo no qual movemos a nossa imaginação e a partir do qual nos integramos à lusofonia, comunidade de milhões de pessoas espalhadas por diferentes continentes, falando português, cada uma a seu modo. Se Fernando Pessoa um dia disse que “a minha pátria é a língua portuguesa”, Mia Couto falou, mais recentemente: “minha pátria é a minha língua portuguesa”. José Eduardo Agualusa sempre ressalta: a língua é uma construção conjunta. Nélida Piñon acentua: “Os inventos verbais dessa língua, que peregrina pela península ibérica, pela África, pela Ásia, pela nossa América, trazem a chancela natural da transgressão. Ela arrasta consigo a luxúria mesmo quando confrontada com experiências radicais, místicas, vizinhas do abismo de Deus”. Cabe a nós flagrar os movimentos do idioma, estudá-los e difundi-los, sobretudo junto às novas gerações. Não foi outra a razão que me levou a instituir o Biênio da Língua Portuguesa como uma das marcas inspiradoras desse mandato. O indivíduo que domina a sua língua, em sua expressão oral e escrita, não vive em seu país na condição de pária, de excluído ou de refém. Eleva-se ao patamar de cidadão, titular de direitos, autor de sua própria biografia.

O culto à literatura e aos livros também é algo que motiva o encontro dessa noite. Objetos misteriosos, os livros prometem a revelação de segredos. Sedutores, acenam com a solução de charadas. Testemunhas da trajetória humana sobre a Terra, os livros simbolizam a permanente aposta da raça em que dias melhores virão, quando as luzes vencerão as sombras e os jardins cobrirão de verde os desertos em que muitas vidas já se transformaram. Companhias desejadas, amigos fieis, conselheiros permanentes, sobre nós os livros exercem poderes mágicos, capazes de anular o tempo e de superar as barreiras postas pelo espaço. Hábeis em transportar seus leitores para universos paralelos, provocam o riso, o choro e o espanto. Portadores da literatura mais erudita à mais popular, dão pouso e merenda a todo tipo de autor, não importando a sua origem ou a sua seara. Afinal, a literatura acolhe gêneros e temas variados, comprovando a riqueza da experiencia da espécie ao longo da história.

Senhoras e senhores, essa é a casa de Alphonsus de Guimaraens, Augusto de Lima, Cyro dos Anjos, Afonso Arinos, Abgar Renault, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa e Bartolomeu Campos de Queirós, entre tantos, tantos outros.

Também por isso, a literatura brasileira, em especial, é tesouro cuja exploração está, sempre, entre os objetivos da instituição. Se duas das primeiras manifestações de nossa produção literária, o Barroco e o Arcadismo, já mereceram da Academia o interesse devido, o que veio depois também foi alvo de atenção qualificada, como o Romantismo, o Realismo, o Naturalismo e o Modernismo, na prosa, e o Simbolismo, o Parnasianismo e, de novo, o Modernismo, na poesia. A literatura contemporânea não é esquecida, ensejando eventos que refletem, com inteligência, sobre seus escritores, estejam eles incluídos e validados pelo chamado sistema literário, estejam eles às margens, nas periferias, lutando para serem editados, ouvidos e lidos. Afinal, a academia não é apenas o lugar do cânone, do consagrado, da tradição. Ela deve ter a vista larga, que alcance o novo, o experimental, o transgressor e o imprevisto. Ela deve se firmar como o lugar do diálogo entre a tradição e o contemporâneo, do qual, seguramente, muitos frutos suculentos podem resultar. A academia não defende esse ou aquele gosto literário. Esse não é o seu papel. Ela defende, antes de tudo, o amplo acesso ao livro, o direito vigoroso à leitura e a uma reflexão crítica sobre os livros e a leitura, para que os leitores possam formar as suas preferências e desenvolver o paladar literário com que se sentirão confortáveis.

Tal atitude faz parte de uma crença firme: a literatura e os livros são essenciais para a educação do povo. Sem educação, não existirá o amanhã. O compromisso mais alto da nação deve ser com uma educação de qualidade e com professores respeitados, bem pagos, que desfrutem da plena liberdade de cátedra e que assegurem uma formação cidadã, humanística e integral, às crianças e aos jovens do Brasil.

Contemporânea de seu tempo, atenta e sensível às dores e às aflições do mundo, a Academia Mineira de Letras não está alheia ao que se passa ao seu redor. Sabe ler a realidade com argúcia e compaixão. Não desconhece os imensos desafios postos à sociedade brasileira hoje. Solidária, participa da vida da comunidade com a disposição de prestar serviços que sejam relevantes. Para isso, investimos na gestão de seu acervo, que vamos abrir, em breve, à consulta pública, e continuamos a oferecer, gratuitamente, programação cultural rica e variada, que desperta o interesse das pessoas e contribui efetivamente para o seu aprimoramento pessoal e profissional.

Como visto, minha responsabilidade não é pequena. Só aceitei a convocação de meus colegas, no entanto, porque sabia que podia contar com eles. Sendo o mais jovem dos integrantes dessa casa, jamais me atreveria a exercer a sua presidência sem o sólido amparo de todos, a quem, mais uma vez, agradeço a confiança. Durante os próximos dois anos, não pouparei esforços para dar a essa casa o que ela merece. E para entregar ao público o que ele espera. Para isso, será preciso caminhar ao lado de uma equipe de funcionários, de parceiros e de patrocinadores que sejam entusiasmados e apaixonados pelo campo da cultura e das artes.

Minha palavra final é um convite. Venham a esta casa. Frequentem esse auditório. Acompanhem a sua programação. Ele estará sempre de portas abertas aos que apreciam uma convivência agradável, e aos que se alimentam do pensamento, da reflexão, da crítica, e, sobretudo, do diálogo – franco mas cordial, num ambiente em que ninguém é dono da verdade.

Muito obrigado!

 

Por Rogério Faria Tavares, Presidente da AML, ocupa a cadeira nº 8.