( Ao escritor Pedro Rogério Moreira, que conviveu com Alberto Deodato, na Livraria Itatiaia, em Belo Horizonte.)

 

Perambulo pelos sebos de Brasília desde que aqui passei a morar, em março de 1975. Ainda funcionava o de há muito finado Antiquário. Hoje menos, mas sempre frequentei o Armazém do Livro  Usado ( do Jorge Brito) , a Livraria  Pindorama e o Sebinho de Livros ( da  saudosa Dona Eura e hoje de sua nora Cida Caldas e seu marido  Euro).

Numa esplendorosa manhã azul de um sábado de agosto, em 2015 – um azul digno dos  anjos e de Guignard – , deparei-me num desses sebos , buquinando daqui e dacolá, com um exemplar ( em ótimo estado!)  do livro “Nos tempos de João Goulart”, de Alberto Deodato, edição da Itatiaia, BH, 1965. Comprei-o na hora, com dois tomos dos diários de Miguel Torga.

São notáveis 225 páginas, em que o autor tempera comentários políticos com refinado humor, ironia e chistoso sarcasmo. Professor de Direito na UFMG, Alberto Deodato exerceu o jornalismo no Rio, na década de 1920. Ele foi, em Minas, Deputado Estadual e depois Federal, pela UDN – União Democrática  Nacional. Era um ferrenho anti-getulista. A UDN ( de Milton Campos,  Pedro Aleixo, Afonso Arinos de Melo Franco, Aliomar Baleeiro, Juarez Távora, Prado Kelly,  Bilac Pinto, Otávio Mangabeira, Guilherme Machado,  Carlos  Lacerda  e do Brigadeiro Eduardo Gomes ) fazia feroz oposição a Getúlio, Juscelino e todos os  militantes e aliados do PSD- Partido Social Democrático.

Sergipano de Maroim  ( ou Maruim, como já vi escrito ), nosso personagem, depois  de agitada vivência no Rio de Janeiro, como  estudante de Direito, jornalista e boêmio, passou a morar em Belo Horizonte. Em Minas, casou-se. Um de seus filhos, Alberto Deodato Maia Barreto Filho, foi também, como o pai, professor na Faculdade de Direito da UFMG.

Alberto Deodato foi Promotor de Justiça, assinou o  corajoso Manifesto dos Mineiros , de 1943, contra a ditadura de Getúlio Vargas e participou da fundação da UDN. Foi atuante radialista e cronista aclamado. Pertenceu à Academia Mineira de Letras ( cadeira nº 12, hoje ocupada pelo escritor Cônego José Gerado Vidigal de Carvalho) . Integrou o  Conselho Federal de Educação. Deixou um louvado “Manual de Ciência das Finanças” e outras obras de cunho jurídico. Tive a satisfação de ser seu aluno no curso pré-jurídico da UFMG, nos idos de 1968.

No campo literário, publicou “Senzalas e canaviais” ( contos), “Doce filha do Juiz” ( romance) , “Flor tapuia” ( teatro), “A Pensão da Nicota” ( comédia) e “Apuros” ( comédia). Mas foi na seara da crônica que ele encontrou seu compasso e  diapasão, seu caminho glorioso.  De saborosas crônicas são seus livros  “Roteiros da Lapa e outros roteiros”, “Políticos e outros bichos domésticos”, “Novaiorque, Paris e Maroim” e o mencionado “Nos tempos de João Goulart”.  Viajou muito. Andou por Ceca, Meca e olivais de Santarém, Oropa, França e Bahia… Mas fazia sempre praça e gabo de haver nascido em 1896,  em Maroim ( Maruim, ele nos dizia, sorridente e de peito estufado ).

De uma família de políticos, nosso autor fez o curso primário no Colégio dos Irmãos  Maristas, em Salvador, e  o secundário  no Colégio Perdo II, no Rio de Janeiro, onde também  se formou em Direito, em 1919.

Alberto Deodato faleceu em 1978, aos 82 anos, em Belo Horizonte, onde hoje dá nome a um dos logradouros do centro da cidade, Praça Alberto Deodato, perto da Praça Afonso Arinos.

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Voltemos a “Nos tempos de João Goulart”. Valha repetir que, na crônica, no texto leve mas substancioso, o autor sergipano-mineiro ( de Maroim, sim, senhor!) era um mestre consumado.  Era perito em cortantes  frases curtas. Seu público leitor tinha, em Minas, as características de um fã-clube. Ele publicava crônicas no jornal “Estado de Minas”, diariamente. Era aclamado nas ruas, na Faculdade, nos cafés, nas livrarias, por onde andasse, simpático, bem-humorado,  elegante, de risada franca, com seus óculos de “fundo de  garrafa” e aros grossos. Um homem de charme e estilo.

Alberto Deodato foi assíduo frequentador da Livraria Itatiaia, onde pontificavam os famosos irmãos Moreiras ( Vivaldi, Édison e Pedro Paulo). Era ali que o maroinense nos siderava com suas boas conversas, seus casos, suas sonoras  risadas: era um causeur, uma fonte do simples  prazer de viver, um professor de vida. Livraria e galeria de arte, na Rua da Bahia, a Itatiaia era ponto de encontro de intelectuais, escritores, leitores  em geral, jornalistas, políticos, pintores. Havia tardes e noites de autógrafos. A bem dizer, foi minha primeira Universidade, durante mais de dez anos. Muito aprendi com Vivaldi, Édison e Pedro Paulo Moreira e também com outros veteranos, como Eduardo Frieiro, Mário Mendes Campos, Manuel Casasanta, Ayres de Mata Machado Filho, Fábio Lucas, Paulo Pinheiro Chagas, Euclides Marques Andrade, Altino Caixeta de Castro,  Bueno de Rivera, Waldemar de Almeida  Barbosa, Emílio Moura, Lacyr Schettino, Soares da Cunha, Martins de Oliveira, Edgar de Vasconcelos Barros, Oscar Mendes, Moacyr Andrade  e  o nosso personagem desta crônica, Alberto Deodato.

Moço curioso, no viço dos 22 anos, frequentador da livraria, tive o privilégio de escrever as “orelhas” de “Nos tempos de João Goulart”. Ali, faço um breve “apanhado” da crônica, desde suas origens portuguesas, com Fernão Lopes, Gomes Eanes  de Zurara, Rui de Pina, João de Barros, até suas características modernas ( via folhetins ), com Machado, Alencar, Bernardo Guimarães, João do Rio, Olavo Bilac, Humberto de Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Luís Martins, Rachel de Queiroz, Álvaro Moreyra,  Manuel Bandeira,  Carlos  Drumond de Andrade, Vivaldo Coaracy.

Nesse “prefácio orelhal” escrevi, a certa altura:

“Mas voltemos a  Alberto Deodato, o sergipano mais mineiro do Brasil, o mais comentado cronista de Minas e dos mais destacados do país.  Neste seu novo livro, cuja tônica é a política, ele faz passar por sua pena satírica e finamente humorística homens e episódios do Governo Goulart, em quadros vivos e pitorescos. Em outras páginas, ora sua saudável veia irônica  e sua poderosa imaginação levam-no a cronicar sobre outros temas, arrancando dos  leitores risos incontroláveis; ora seus sentimentos pessoais o obrigam a confissões e confidências de delicado lirismo – e esta é a faceta do cronista sentimental e humano.”

Alberto Deodato Maia Barreto foi uma  das pessoas mais simpáticas e cativantes que conheci na minha peregrinação por este mundo. Estou certo de que é o sentimento de todos aqueles que tiveram a ventura de conhecê-lo e com ele passar inesquecíveis momentos. É uma grande saudade no coração de Minas Gerais.