Longe vão os tempos em que os “brasileiros” em Portugal eram sobretudo portugueses que viviam ou tinham vivido no Brasil e em que seria fácil contar os brasileiros que vinham visitar parentes, peregrinar a Fátima, comer bacalhau, beber bons vinhos e repousa, até na língua, antes ou depois de uns passeios pela Europa. Nas últimas décadas os brasileiros de Portugal, em bem maior número, são brasileiros de origem, mesmo que com avós ou bisavós portugueses, em muitos casos só recentemente descobertos, se não eram encobertos até por alguma vergonha.
Quando outrora se falava em emigração luso-brasileira raros seriam os que concebiam uma emigração bidirecional. E a fixação de portugueses no Brasil, que em 2010 ainda atingia o número de 137.973, não suportaria qualquer comparação com a de brasileiros em Portugal. Mas a partir de 1960 assistimos a um fenómeno novo na história das relações luso-brasileiras: a entrada expressiva, e crescente, de brasileiros em terras portuguesas. Depois das levas de estudantes de medicina e de “moças” recrutadas por máfias ou mafiosos, que a polícia fingiu desconhecer até se ouvir no mundo o alerta das“mães de Bragança”, foram desembarcando na pequena praia lusitana dentistas, que tanto fizeram abrir a boca de jornalistas levianos, jogadores de futebol, capoeiras, bruxos e evangélicos (nem sempre movidos por causas evangélicas), garçoms de cafés, bares, restaurantes e hotéis, trabalhadores de shoppings ou do comércio, empregadas ou acompanhantes domésticas, operários, técnicos, músicos e artistas de vária espécie, e, mais recentemente, reformados e empresários, ou ex-empresários, alguns dos quais podem ter vistos gold e comprar, não se pergunte a origem do dinheiro, casas luxuosas de Cascais, do Douro e do Algarve; e não devemos esquecer os estudantes universitários, que no presente ano escolar são mais de 13 mil.
As estatísticas dizem que residem agora em Portugal 105.423 brasileiros, um quinto da totalidade dos estrangeiros. Mas pelo que vemos e ouvimos em espaços públicos e privados, na televisão e na rádio, temos a sensação de que serão muitos mais; aliás nesse número não entram os chamados luso-brasileiros e os turistas que renovam habilmente a sua permanência. Mas nesse número também não entram legiões de artistas de passagem, como atores de tele/novelas – não se esqueça a importância que estas,
desde a Gabriela (1977), tiveram para aproximar os portugueses dos brasileiros, ou vice-versa – e cantores populares, até os sertanejos, que atuam todos os dias em salas portuguesas.
Não é difícil entender o fenómeno recente da emigração de brasileiros para Portugal: por um lado, a língua, as matrizes histórico-culturais, a tranquilidade democrática, a Europa; por outro lado, a insegurança, a violência (mais de 65 mil homicídios só no ano passado, alguns deles executados com impensável barbaridade), a frequência do roubo, da fraude e da corrupção, o desemprego desenfreado, a crise económica… E convém não esquecer os casamentos mistos, nem a rapidez e a relativa facilidade das viagens entre as duas margens do Atlântico, que também estimularam o turismo português no Brasil (a TAP chega agora a mais de uma dúzia de cidades brasileiras).
Os brasileiros e a sua literatura, a sua música, as suas artes, a sua culinária, os seus costumes, não só o seu futebol e o seu carnaval, e não só a sua linguagem – o “português com açúcar”, que já foi mais açucarado, e mais português-, estão agora por toda a “terrinha”; esperemos que os portugueses, que já falam alegremente em “bagunça” e em “bunda”, e já substituem a “bicha” pela “fila”, não absorvam o “r” caipira, não digam “a mídia, não matem alguns plurais (“vamo”, “10 real”), se já se deixaram contaminar por regências como “o país que gosto” e por redundâncias como “há anos atrás”.
A presença brasileira em Portugal é tal que talvez permita permutar os topónimos da frase que Fernão Cardim (1540-1625) deixou num dos seus Tratados da Terra e Gente do Brasil: “Este Brasil é já outro Portugal”. Na verdade, chega a parecer que este Portugal é já outro Brasil.
No “Fado tropical”, Ruy Guerra e Chico Buarque também conceberam a espantosa inter-relação dos espaços (ou das culturas) de Portugal e do Brasil: “E o rio Amazonas /Que corre Trás-os-Montes/ E numa pororoca/ Desagua no Tejo”. Só que eles anteviam ironicamente um “imenso Portugal” e um “império colonial” no Brasil, onde por sinal cabem mais de 90 Portugais. Portugal nunca poderá ser um “imenso Brasil”, nem poderá acolher muitos brasileiros. Mas se ao longo de séculos, em tempos difíceis, social, politica ou economicamente falando, milhares de portugueses puderem sentir-se em casa no Brasil, também os brasileiros poderão sentir-se em casa na pequena casa lusitana. Não só por causa da
língua ou da história comuns, também porque os portugueses estão afetivamente próximos dos brasileiros (como dos caboverdianos) e gostam da sua “leveza”, do seu “pensamento positivo, da sua alegria e sabedoria de viver ou de conviver.
Claro que ainda há comportamentos xenófobos ou racistas, que nem sempre terão que ver com preconceitos de colonizador, tão condenáveis como os de colonizado; mas, embora inadmissíveis, eles raramente justificarão as generalizações de alguns brasileiros ou de alguns jornalistas brasileiros que nunca se incomodaram, por exemplo, com a “piada de português” ou com apodos de portugueses no Brasil (portugas, galegos, tamanqueiros, pés-de-chumbo…).
Os portugueses têm beneficiado muito com o convívio e o trabalho dos brasileiros, que, com raras exceções, formam uma comunidade exemplar. Também por isso, muitos portugueses estranharam que ela tenha votado maioritariamente num presidente que nunca dera boas provas políticas ou outras, que defendeu a ditadura militar e a tortura, e que ofende índios e minorias, ataca universidades e escolas (que quer “sem ideologia” para que vingue a dele), desvaloriza as humanidades, e em vez de congregar, mais tem cavado o fosso entre as famílias brasileiras.
Portugal sempre contou com a amizade e a ajuda de brasileiros de superior qualidade, cidadãos exemplares, profissionais muito competentes, fecundos criadores. De um deles disse outro grande brasileiro, Drummond: ”Ontem, hoje, amanhã, a vida inteira, / Teu nome é para nós, Manuel, bandeira”. Foi este que, louvando num poema os espanhóis e a Espanha, se achou no dever de acrescentar: “A Espanha de Franco, não”.
Por Arnaldo Saraiva,
professor emérito da Universidade do Porto, Portugal