Belo dia, eu recebi um telefonema de Vivaldi Moreira, pedindo-me que lhe ajudasse a encontrar uma frase de Guimarães Rosa; e explicou:
“É que o pessoal dos Correios quer colocá-la em determinada propaganda, não me lembro de quê. Já revirei tudo, abri o “Grande Sertão: Veredas”, e não achei nada que me agradasse. Como você vive remexendo nos escritos desse sertanejo de gravatinha borboleta, pensei que pudesse me socorrer. Não é nada fácil a leitura dos livros do escritor famoso, e confesso que me intriga aquela história da gente ter que ler com duas varetinhas nas mãos, à moda um metrônomo ou um diapasão, sei lá”, criticou o presidente perpétuo.
O pedido de Vivaldi, como sempre, era uma ordem, e tratei de dar início à busca das melhores frases que poderiam servir-lhe naquela empreitada. Fiz uma listagem caprichada de pensamentos postos em letras do homem de Cordisburgo. De posse de uma gramática, pois imaginei que a escolha poderia suscitar alguma querela, parti para o encontro com o mestre das palavras ditas e escritas.
Depois de papo agradável sobre assuntos diversos, entramos de vez naquilo que me levara à Academia: a entrega das diversas orações rosianas para uma preferência pessoal. Ao cabo da leitura de algumas das selecionadas, ele apontou para a última delas, afirmando com entusiasmo: “Esta! Sei que vou criar caso, e o pessoal vai tentar corrigi-la!”
Era uma certa proposição, citada por muitos como incorreta, de concordância errada. Sabichões chegaram a mencioná-la em textos com a devida “correção”, naquilo que imaginavam estar procedendo muito bem. A frase era simplesmente: “Minas é muitas”. E todos corriam a protestar, argumentando que o predicativo era isso e aquilo…e que o sujeito, Minas, estava no singular, mas aquele complemento do verbo de ligação, no caso, ser, estava no plural, muitas, e o verbo deveria acompanhá-lo etc, etc.. . E daí?
Vivaldi Moreira me garantiu que já havia lido algo que dava razão a Guimarães Rosa, mas precisava de palavra escrita, preto no branco, para garantir seu ponto de vista. E foi para isto que levei comigo a gramática. Ele a tomou com afoiteza, e abriu-a na página que eu havia marcado antecipadamente.
Tratava-se do primeiro volume (consta de cinco volumes) do Curso Integral de Português, de Cândido de Oliveira, da Divulgadora Editorial Ltda., de 1969. E a página marcada era a de número 116, dentro do capítulo “Verbo”, com o título “Concordância Verbal”. Após algumas outras referências gramaticais a respeito do assunto, encontrou o que buscávamos, abaixo do subtítulo: “Concordância do Verbo Ser”.
Vivaldi demonstrava satisfação. Com o dedo no papel, comentou: “Estava na cara que o homem do Itamarati não ia cometer uma besteira de tal tamanho, não é mesmo? Ele gostava de deixar uns “gatinhos” por onde passava. Deveria rir dos bocós que o corrigiam”.
E depois de ler o texto explicativo em voz alta, e acrescentando outros exemplos por sua conta, pediu-me que tirasse um xérox da página para que ele ficasse “prevenido”.
Na verdade, o que o texto estampa é o seguinte:
“Quando o sujeito do verbo ser (e outros verbos de ligação) for:
- a) palavra de sentido amplo, como “vida”, “humanidade”, “ciência”…(etc); (no caso, Minas);
- b) isto, isso, aquilo…, mais predicativo no plural – o verbo pode concordar com o sujeito (singular) ou com o predicativo (plural):
Exemplos:
- “O mundo” será lutas?
“O mundo” serão lutas?
“A ciência” parecia sonhos
“A ciência” pareciam sonhos.
“Isto” é estórias
“Isto” são estórias
“Tudo” era amolações.
“Tudo” eram amolações
O tema continuava no parágrafo 128, da página 203, sob o título: “Predicativo do Sujeito”, onde encontramos citados inúmeros verbos de ligação e alguns que podem funcionar como tais: permanecer, tornar-se, achar-se, começar, acabar, e uma série de outros.
E Vivaldi terminou o assunto com mais uma de suas irreverências costumeiras: “Publique-se: “Aviso aos imbecis:”Não tentem corrigir Guimarães Rosa!”.
Carmen Schneider Guimarães – Escritora/Presidente emérita da AFEMIL – Acadêmica da AML, ocupa a cadeira nº 5.