Fazem 64 anos que um megaespetáculo deixou sua marca indelével na história das artes
cênicas de Minas. Refiro-me à encenação de “Crime na Catedral”, de T.S. Eliot, um
clássico da dramaturgia inglesa, que ganhou vida pela primeira vez (e que eu saiba, a
única) no Brasil, em Belo Horizonte, nas dependências do Teatro do Instituto de
Educação, hoje sem utilização pública, dirigido pelo diretor italiano Giustino Marzano,
recém contratado, naquela ocasião, para ocupar o cargo de Diretor Artístico do Teatro
Universitário da UFMG.

Indicado pelo embaixador Paschoal Carlos Magno, o maior incentivador dos Teatros de
Estudantes no país, o italiano Marzano chegou da Itália em setembro de 1957 para
assumir o cargo que lhe fora oferecido pela reitoria da UFMG. Carlos Kroeber e eu
fomos recebê-lo no Rio e conduzi-lo para a capital mineira. O Teatro Universitário da
UFMG havia sido criado, oficialmente, em 1956 e ocupava um chalé de dois andares na
esquina de Gonçalves Dias com Avenida Brasil. A reitoria criara na ocasião uma
diretoria não remunerada, da qual faziam parte Carlos Kroeber, João Marschner,
Domingos Muchon e eu, reservando uma vaga para um diretor artístico a ser contratado
com um salário de 10.000,00 cruzeiros, nada atrativo para qualquer brasileiro, muito
menos para alguém que vinha da Itália para ocupar o cargo. Na verdade, a remuneração
correspondia a perto de três salários mínimos, na época estipulado em 3.800,00
cruzeiros mensais.

A preocupação maior da nossa geração naqueles tempos era a criação definitiva e
sustentada de um Curso de Formação de Atores, inspirado no modelo altamente positivo
da Escola de Arte Dramática, a EAD, criada em São Paulo por Alfredo Mesquita por
volta de 1948 e cuja presença, em Belo Horizonte, ocorrera em diversos Festivais de
Teatro promovidos pela União Estadual dos Estudantes no decorrer da década de 50.

Pouco sabíamos da existência de uma Escola de Teatro no Rio de Janeiro, a Martins
Pena, e a de Salvador, criada pela Universidade Federal da Bahia com o patrocínio da
Fundação Rockfeller em 1956, e que estava dando os seus primeiros passos sob a
direção de Martim Gonçalves. A EAD era o nosso modelo, nossa inspiração, nosso
exemplo. Marzano, entretanto, tinha outros planos para o Teatro Universitário e não
demorou muito para expô-los com a retórica de quem sabe argumentar e com o
entusiasmo de quem sabe convencer. Para o diretor italiano, era preciso mostrar à
reitoria da UFMG que o Teatro Universitário poderia ser um canal legítimo para dar
publicidade à própria universidade e, obviamente, aos seus dirigentes, particularmente
ao próprio reitor. Com isto, o TU poderia ser melhor avaliado, melhor aquinhoado com
verbas de manutenção e criação, melhores instalações físicas e suas reivindicações
apreciadas com mais generosidade pelo Conselho Universitário. Segundo Marzano, o
melhor caminho para conseguir estes objetivos era a encenação de um grande
espetáculo, um cartão de visitas para o TU e para a UFMG. Marzano não disse, mas um
espetáculo desta natureza também era um cartão de visitas dele, uma prova de sua
competência e capacidade criativa, uma maneira de firmar-se no cargo para o qual fora
contratado. Embora relutantes diante da proposta do diretor italiano, pois ela vinha de
encontro ao que havíamos sonhado desde o início da década de 50 e conquistado a duras
penas e muita dificuldade, éramos muito jovens para resistir à aventura de uma
encenação que prometia ser um marco histórico nas artes cênicas mineiras, quiça do
Brasil. A Diretoria do TU, ainda que um tanto frustrada com a protelação do início do
Curso de Formação de Atores, acabou dando seu aval à proposta de Giustino Marzano.

A escolha pessoal de Marzano recaiu sobre o texto poético de T. S. Eliot, “Crime na
Catedral”, escrita em 1935. É possível que a escolha tivesse sido motivada por um fato
relativamente recente da década de 50: a peça de Eliot tinha sido transformada em filme
em 1952 e Marzano poderia ter assistido a película na Itália; não me recordo de que este
filme tenha sido exibido no Brasil naquela década. O texto do poeta norte-americano de
nascimento, mas naturalizado inglês em 1927, é exemplo perfeito do que se
convencionou denominar Teatro Poético e recebeu uma tradução exemplar de Maria da
Saudade Cortesão, ela mesma poetisa e tradutora de obras teatrais clássicas. A peça trata
dos conflitos entre o Arcebispo de Cantuária, Thomas Becket, e o Rei da Inglaterra,
Henrique II, envolvendo questões de privilégios e direitos tradicionais da igreja católica
que Henrique II queria suprimir colocando o clero sob sua autoridade real e sem a
independência que a tradição medieval a ela conferia. Não conseguindo submeter o
arcebispo à sua vontade, o rei mostrou-se incomodado com a existência do súdito
rebelde: não faltaram vassalos fieis ao Rei para assassinar Thomas Becket dentro da
Catedral de Cantuária.

Acostumados a preparar espetáculos sem disciplina muito rígida, durante os próximos
três meses e meio, entre meados de setembro de 57 e 10 de janeiro de 58, os que
constituíam o elenco do TU foram assaltados por uma nova sistemática de ensaios.
Começava com uma minuciosa, extenuante e prolongada análise do texto, esmiuçando o
significado de cada frase, de cada palavra, dissecando cada termo. Um mundo de sinais
gráficos foram introduzidos para a respiração, para cada tipo de pausa, para cada
alteração de ritmo. Super-objetivos e objetivos foram pesquisados, em cada cena, em
cada segmento de cena. Seguíamos, naqueles ensaios, estritamente, os ensinamentos do
grande ator e diretor russo Stanislavski, autor de um dos mais importantes métodos de
interpretação já escritos no mundo.

Verdade seja dita: naquela sistemática, os ensaios eram verdadeiras aulas. Da exaustiva
análise de texto passou-se à não menos exaustiva ação física, exigindo dos atores e
atrizes um preparo corporal estafante. Dotado de uma capacidade de trabalho
impressionante, Marzano ensaiava grupos de atores e alguns deles individualmente,
como foi o meu caso. Os ensaios começavam às 18:30 e iam até uma da madrugada. Às
vezes, até duas da manhã. A produção desenhou-se como um mega-espetáculo jamais
visto em Belo Horizonte e até mesmo em outros centros do país. Pelo menos vinte
figurantes, de porte físico apolíneo, foram recrutados nas fileiras da Polícia Militar:
eram apenas acessórios, soldados trajando roupas medievais que deveriam postar-se nas
laterais da plateia. Não diziam nada; não faziam nada. Eram elementos decorativos da
encenação. Em princípio, a estreia estava prevista para a igreja da Pampulha, em
apresentação de gala, sendo o espetáculo transferido, em seguida, para outro espaço. A
igreja da Pampulha nem sequer estava funcionando: estava interditada pela autoridade
episcopal, por razões absolutamente incompreensíveis, para não dizer ridículas, ou seja,
a Igreja não concordava com a arquitetura de Niemayer para templos católicos.

Também não se conseguiu sua liberação pela Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (o imóvel era tombado) para abrigar a encenação de “Crime na
catedral”, embora um dos ensaios, o de 13 de outubro, tenha sido feito naquela igreja.
Assim, projetou-se o espetáculo para o palco do Instituto de Educação, na época em
reforma: não existiam cadeiras na plateia. Na frente do Instituto, no pátio externo,
quatro cavaleiros medievais em seus cavalos ajaezados, deveriam criar a atmosfera do
século XII. No saguão de entrada do Instituto de Educação, tocheiros medievais
deveriam manter acesas suas chamas. Tocheiros, diga-se de passagem, que foram
confeccionados especialmente para a encenação. Em 1958, há anos, quem poderia
imaginar que um espetáculo com este aparato, com este requinte, e com estes gastos,
porque tudo isto custava dinheiro, e muito, poderia ser produzido no Brasil? Marzano
fez duas contratações fundamentais: chamou para ser cenógrafo e figurinista o
mosaicista italiano Alfredo Mucci, autor dos mosaicos que, até hoje, deslumbram os
frequentadores da Igreja Nossa Senhora do Carmo, na avenida do mesmo nome, em
Belo Horizonte; e contratou, para confeccionar os trajes, um costureiro, também
italiano, radicado em S.Paulo, de nome Giuseppe Marchitto, que montou num dos
cômodos da sede do TU o seu atelier de costura. O elenco via aquela movimentação
com deslumbramento e sem entender exatamente o que estava acontecendo. A diretoria
do TU, entretanto estava atenta: de onde viriam os recursos para pagar aquela produção
que se anunciava gigantesca? Marzano não se preocupava com isto. As demarches junto
à Reitoria garantiram cerca de 350 mil cruzeiros, uma quantia respeitável. Vê-se, pois,
que os recursos disponibilizados pela Reitoria, para uma produção de um grupo
universitário na qual os atores não eram pagos, em Belo Horizonte, representavam
muito. O cenário de Alfredo Mucci não era sofisticado. Consistia de praticáveis que
ocupavam boa parte do palco formando um plano elevado, ao qual se chegava por
escadaria de poucos degraus. No fundo do palco, suspensa, uma cruz estilizada na sua
forma. À esquerda, visto da plateia, um púlpito, mas sobre ele uma espécie de docel,
este sim, de grandes proporções, que avançava sobre as primeiras filas da plateia numa
forma geométrica que sugeria uma abóbada de catedral, uma estrutura em madeira que
exigia confecção esmerada, particularmente a parte em balanço, sem qualquer apoio
adicional, que se projetava sobre a plateia. Tudo em cinza.

Marchitto, incansável, deu forma e acabamento aos figurinos de Mucci, peças medievais
confeccionadas em feltros, veludos, sedas e brins para os 16 atores do espetáculo, os
cerca de 20 figurantes da Polícia Militar e ainda os quatro cavalos que deveriam ser
postados na área fronteiriça do Instituto de Educação. Mandou-se forjar tocheiros e
espadas na Serralheria Serramac Ltda., cujo proprietário, naquela época, era casado com
a jornalista Haydée Cintra. Recolheu-se na cidade todo o equipamento de iluminação
teatral disponível, mesmo assim precário; sob a orientação de Marzano, trabalharam na
iluminação do espetáculo Swend Kieruff, José Carlos de Almeida Cunha, Paulo Luiz
Correia e José Francisco Deusdará.

Os ensaios, em ritmo esquizofrênico, prosseguiam até alta madrugada. Marzano era
rígido e temperamental. Trabalhava com atores jovens e de experiência reduzida que
tinham mais entusiasmo do que técnica. Não era fácil atingir o resultado que o diretor exigia. O mais provável é que ele nunca seria atingido integralmente, como de fato aconteceu. A consequência óbvia era uma tensão permanente nos ensaios, progressiva, que não raro descambava para a discussão grosseira, o palavrão, que só fazia pesar ainda mais o clima tenso dos ensaios. Uma certa animosidade entre os atores e diretor foi ganhando corpo. Não raro, a diretoria tinha que intervir para acalmar os temperamentos, o que não era nada fácil, dada a prepotência com que Marzano tratava do assunto. Apagar incêndios passou a ser a missão da diretoria, com o natural desgaste que estas constantes intervenções provocavam. Mas o espetáculo se encorpava. Num trabalho magistral, Marzano conseguiu do coro das sete mulheres de Cantuária efeitos vocais surpreendentes e belíssimos. Era o melhor que havia em todo o espetáculo. Com todas as distorções de relacionamento, era inegável o talento do diretor italiano para
extrair de um grupo amador um resultado que não era perfeito, mas causava impacto e admiração a quem o visse. Vale lembrar o nome das atrizes que constituíam o coro das mulheres de Cantuária: Déa Abreu, Neuza Rocha, Magda Lenard, Mariangela Vargas, Maria Luiza Coutinho, Marilene Rodrigues de Melo e Terezinha Alves Pereira.

Paradoxalmente, era no coro destas mulheres que residia um dos defeitos mais graves da
direção de Marzano: uma prosódia estranha, com pausas alógicas que fragmentavam o
ritmo da frase, o discurso narrativo, soando de maneira não apenas falsa, mas
sintaticamente errada. O fato não passou despercebido a críticos mais argutos, como
anotou Sylvio de Vasconcellos na sua apreciação sobre o espetáculo, publicada no
Estado de Minas. Esta prosódia também podia ser observada no desempenho de alguns
outros atores, sendo poucos os que não se deixaram dominar pelas exigências
equivocadas do diretor que, certamente, não conhecia suficientemente a língua
portuguesa para perceber seu equívoco. O tempo mostraria que não eram somente estas
as razões de uso daquela estranha prosódia. Em outras encenações dirigidas por
Marzano, posteriores, quando ele já devia dominar melhor a língua portuguesa, o
mesmo equívoco foi cometido, como aconteceu em “Apolo de Belac” e na encenação
que dirigiu no Rio, “O soldado fanfarrão”, de Plauto, para o grupo teatral Os Duendes.
Mas independente do tratamento vocal inusitado e estranho que vez por outra dominava
o ritmo da encenação, “Crime na Catedral” foi um espetáculo de impacto, visualmente
belo e instigante, absolutamente inovador e, seguramente, aquele que mais espaço
conseguiu ocupar na mídia impressa. Sentia-se na encenação algo diferenciado, muito
além das convenções teatrais daqueles tempos, antecipando muito do que ocorreria nas
décadas seguintes quando experimentações cênicas começaram a ser implementadas a
partir da criação do Oficina de José Celso Martinez Correa e outros grupos
experimentais.

Quem se der ao trabalho de vasculhar a imprensa da época terá a confirmação de que
nunca, até os dias de hoje, uma encenação teatral ocupou mais espaço na mídia. No “O
Diário”, João Etienne Filho escreveu nada menos que sete críticas sobre o espetáculo.
Inúmeras reportagens e análises foram feitas. É preciso, entretanto, ressaltar o óbvio: era
um espetáculo de amadores, todos muito jovens, alguns jovens demais para chegar à
altura dos personagens que interpretavam, mas era inegável que se estava diante de algo
nunca visto na capital mineira. E talvez também tivesse surpreendido as plateias e
críticos de outros centros, como Rio e S. Paulo, se lá tivesse chegado. Naquele final de 57, inícios de 58, “Crime na catedral”, pioneiro e revolucionário, ficou nas fronteiras de Belo Horizonte. Mas, há razões para afirmar que foi uma das encenações mais brilhantes do teatro já feito em Minas, um marco na história das artes cênicas mineiras.

Lamentavelmente, o registro, mesmo só fotográfico, da encenação é pífio. O que resta
são lembranças daqueles que lá estiveram presentes, no velho Teatro do Instituto da
Educação e puderam se emocionar com o texto de Eliot e o visual da encenação.