Resenha: A CIDADE SUBMERSA E OUTRAS HISTÓRIAS SORTIDAS, de Olavo Romano

Percorrer o livro de Olavo Romano “ A cidade submersa e outras histórias sortidas” é realizar, junto com o autor, uma viagem afetiva a tempos que habitam memórias de muitas épocas, a lugares que ele conhece como a palma da mão. Ali o tempo não tem fronteiras demarcadas, aproximando o passado e o presente em detalhes preciosos que a narrativa esculpe com cuidado e requinte de mestre.

As palavras são capturadas na origem, compondo cenários, enredos e diálogos que revivem as cenas, dão espaço e voz aos personagens dos grotões, das pequenas cidades mineiras, das casas de fazenda povoadas de sotaques e jeitos das Minas Gerais, guardando espaço para as imagens poéticas e as expressões singelas, preservadas em baús de refinada lavra. Está ali retratado o pensamento simples e direto da gente que habita as roças e os lugares distantes da cidade grande. Palavras que perderam o uso voltam reanimadas na hora exata, como no conto O pirotécnico: – “Adoça com rapadura mesmo, que o moço é fogueteiro”.

Olavo busca na oralidade o tempero certo, a medida justa da escrita, com o dialeto de cada personagem, mas uma química perfeita mistura o popular e o erudito (ou o falar dos “letrados”, como diria ele). A própria narrativa soa como uma visita aos lugares percorridos e não perde a oportunidade da dimensão estética, mas salpicada de humor, como no conto Os surdos: “Um dia, céu ainda meio estrelado, a mulher estremunhada de preguiça e sono, estranhou o marido ali, rente, sovelando na espera do café não passado, cavalo arreado, pronto para bater orvalho”. Aliás, o humor é ingrediente infalível, permeando de imprevistos a realidade engenhosamente elaborada nas situações descritas e nos personagens recolhidos em sua trajetória de muita prosa e boa memória, marcando especialmente os desfechos surpreendentes. No conto Dona Leontina, o Lara e o Leão, a viúva “convocada à repartição com a maior brevidade possível” para apresentar seu Atestado de Vida e Residência, “levou um belo embrulho de papel celofane, desculpando-se pelo tamanho da brevidade, pois não tinha forma maior”. No conto Uma promessa no ar o mendigo recusa a comida oferecida por Dona Amasiles, mas com a condição de não se atrasar: “Assim, com tanta exigência, não vai me interessar, não”. Até o engraxate de Bonitas botinas deixa de atender ao cliente porque a botina está sem cadarço: “O senhor me desculpe, moço, mas tenho de zelar pelo meu nome”.

As histórias da política estão presentes em muitos dos contos, com cabos eleitorais percorrendo os grotões de Minas, colhendo a “qualificação” dos eleitores de mãos emperradas pelo cabo da enxada, com dificuldade para assinar. Conhecedor dos dialetos e costumes “dos tempos de antanho”, quando os políticos eram “homens que sabiam ler nas entrelinhas”, Olavo pincela com cores nítidas o clima acirrado de “febre cívica” que traçava nossos destinos, como nos episódios narrados em Os políticos de antigamente. Depois de episódios buscados em pequenos municípios mineiros vai à Bahia contar o caso de uma apuração dos votos: “A eleição, mesmo, já foi apurada. Agora só falta os fraude.”

De vez em quando o assunto resvala para os casos vivenciados com amigos de prosa e percurso. Há histórias formadas por mini contos, num encadeamento de acontecimentos surpreendentes, onde personagens surgem e desaparecem nos entrelaços dos enredos, como o delicioso episódio da velhinha que prometeu roupa nova a Nossa Senhora das Dores, mas diante dos orçamentos feitos pela zeladora da paróquia “baixou humildemente as vistas” e definiu o que podia comprar: “Ah, um artigo mais em conta, uma roupinha assim para ela andar em casa…” e depois ainda vem o comentário: “Gosto de imaginar Nossa Senhora numa casinha simples do interior, varrendo o terreiro, soprando arroz, rodeada de passarinho, toda feliz com o vestido de chita dado pela amiga do Lara”.

Especialmente na trajetória que aparece em São Francisco rio abaixo a gente viaja junto, diante do texto urdido com o cenário, o vocabulário, os habitantes e os festejos locais que rodeiam o Velho Chico. “O visto e vivido dá livro, vídeo, filme, CD, ensaio fotográfico, literário, antropológico ou sociológico, análise econômica, poema, relatório de meio-ambiente, libelo às autoridades constituídas, oração, praga ou blasfêmia. Das onze cidades visitadas entre Pirapora a Penedo, fica a memória de milhares de rostos e vozes, acordes, foguetes e bandeirinhas, lágrimas e vivas, passos e gingas, gestos e alegorias, denúncias, discursos, pedidos e esperanças”.

Não é gratuita a escolha do nome do livro. Notícias da cidade submersa emergem também em outros contos, como No alto de um maleiro raramente aberto, onde se encontra um texto antigo sobre o rio Araguari e a represa Nova Ponte, lugar engolido pelas águas: “Dizem que, de tardinha, quando o vento sopra da represa, pode-se ouvir vozes da cidade submersa – cochichos, risadas, alarido de criança, um riste planger de sino, latidos e cacarejos, barulho de panela na hora da janta. Até um cheiro de tempero você é capaz de sentir. Tem gente que, alta madrugada, jura escutar o canto de algum galo distraído”.

O que marca permanece é nome do conto onde se resume o sentimento que brota ao ler tantas histórias recolhidas, para não deixar o tempo apagar seu rastro: “Cada um de nós guarda, num cantinho da memória, a lembrança de cheiros, gostos, sentimentos associados a objetos, utensílios, roupas, marcas, pessoas que nos levam a tempos, lugares e situações surpreendentes.”

Um rosário infindável de histórias ouvidas desde sempre e armazenadas na memória prodigiosa, é permeado pela vasta leitura de muitos autores, como lembra a professora Márcia Marques de Morais em seu delicioso e impecável Prefácio: “ecos roseanos também se fazem ouvir no texto de Olavo”. No Cena domingueira o narrador “descobre, sem sertão nem vereda, que viver pode ser realmente perigoso, mesmo na iluminada manhã de domingo”.

Flávia de Queiroz Lima