Quando o navio Ava deixou o porto de Marselha, em maio de 1891, rumo às ilhas Maurício, não contava ficar atracado na ilha de Plate mais que uns poucos dias. Ficou quarenta. O jovem Léon não fazia ideia de que lá permaneceria por muito tempo e muito amor. E foi nessa ilha que viu dor, loucura e morte causada pela peste da varíola e outras mais. Foi lá que ficou sabendo do massacre sofrido pelos indianos que ali aportaram fugindo da fome. Foi lá que acompanhou a luta do irmão Jacques, médico, em sua missão frustrada de salvar vidas. Foi lá que viu o sofrimento da cunhada Suzanne, desolada, com o livro de Longfellow, seu companheiro inseparável, pois não podia imaginar aquela espera, aquele naufrágio “em uma ilhota batida pelo vento e pela chuva.” Foi lá também que conheceu o amor de sua vida, Suryavati –  Surya, como a chamava.

Esse é o universo complexo do romance  A Quarentena, (1995), de J-M. G. Le Clézio, escritor francês, premiado com o Nobel de Literatura,  em 2008. Segundo a academia sueca, trata-se de um autor que explora “a humanidade além e abaixo da civilização reinante.” E, segundo entrevista do autor ao jornal “O Estado de São Paulo”, por ocasião do lançamento do  livro no Brasil, o romance teria sido inspirado em Os sertões, de Euclides da Cunha – o que nos surpreende pela distância do universo das duas obras. Talvez ele tenha se inspirado na fome, na dor e na resistência dos pobres de Canudos, deixados para morrer à míngua, como os indianos trabalhadores da cana-de-açúcar, dizimados às centenas em A Quarentena. Ou simplesmente tenha se inspirado na grandeza e humanidade da obra do nosso Euclides.

Le Clézio conhecia bem a realidade das ilhas Maurício, ele mesmo franco-mauriciano, e vai mesclar fatos vividos por sua família – presente na Ilha desde a colonização francesa no século 19 – com os fatos da sua ficção. Esse arquipélago passou por muita dominação e crueldade inimaginável, desde a sua descoberta pelos portugueses, no século 16, passando pelos tentáculos dos holandeses de Maurício de Nassau,  depois nas mãos dos franceses com a famélica Companhia Francesa das Índias Orientais, para cair em seguida nas garras dos ingleses sobre os indianos, presentes em  figuras como Giriala, Ananta e a filha Surya.

A narrativa  nos fala de três tempos da história: o presente, da quarentena, enquanto os passageiros aguardam ser levados ao destino final, separados por etnias e classes sociais: os brancos europeus nas habitações de Quarentena, e os indianos, no lado oposto, na ilhota de Gabriel, mais miserável do que nunca. O passado, subterrâneo, que no entanto emerge com a força de uma grande vaga, como as do mar de Maurício, na memória de todos, pois foi numa quarentena também que outros imigrantes foram abandonados na ilha para morrer. E o terceiro tempo, contemporâneo, quando um descendente busca a memória da família e a própria identidade, num tempo já perdido. Não necessariamente nessa ordem.

Le Clézio, mestre do romance, mergulha o leitor no cenário das ilhas Maurício, Plate e Gabriel, verdadeiro paraíso terrestre de águas cor de esmeralda, areias brancas, céu limpo e ensolarado, plantas exóticas, pássaros em bandos planando sobre as encostas como que vigiando-as dos humanos invasores – tudo perfeito -, para, ao mesmo tempo, justapor a esse paraíso doença, fome, sofrimento e morte, que não dá trégua aos lá desembarcados. Paraíso e Inferno. Pois é nesse inferno que o jovem Léon, criado e educado na França e na Inglaterra, vai conhecer o amor de sua vida. Amor por uma jovem indiana de origem eurasiana, arquétipo da alma feminina, anima, com seu perfume, sua beleza de deusa, sua elegância natural, seu xale colorido, seus cabelos longos e negros, seus olhos de âmbar, suas pulseiras de cobre tilintando e sua delicadeza. Estrela guia. Tudo em Surya é um convite silencioso ao amor.

Léon e Surya são, podemos assim dizer, a versão de Paulo e Virgínia, (1788), romance clássico de Bernardin de Saint-Pierre (citado en passant no livro), que encantou e encanta os leitores do mundo inteiro por sua inocência e romantismo. Desse modo, temos os dois jovens em A Quarentena, numa ilha idílica – ambiente perfeito, pois a água simboliza a emoção mais pura – após o encalhe do Ava, na mesma ilha Maurício do romance de Saint-Pierre, com um navio naufragado ali no Oceano Índico; e temos ainda reavivada a ideia iluminista de Rousseau do homem bom junto à natureza, longe dos males da civilização. É isso que acontece com Léon, que molda o seu caráter com a honestidade e o respeito humano, com a força telúrica, algo que vem das profundezas do seu ser, como a lava expelida também das profundezas do vulcão da ilha de Plate.

Esse romance idílico nos conduz, no entanto, a veios profundos, subterrâneos, da história das Ilhas Maurício pela  família Archambau, exploradora da cana-de-açúcar, em fins do século 19, com seus escravizados, indianos esquálidos, cor de madeira velha, seminus, de cortar o coração; família de cuja descendência os Léons, pois há mais de um, não se orgulham. É sobre essa gente escravizada que eles refletem e têm comiseração. E, como “o barco bêbado” do poeta Arthur  Rimbaud (1854-1891) , seguem libertos do que os prendia, da carga, do peso do nome da família Archambau, cuja marca era o sangue dos escravizados em suas plantações da cana-de-açúcar, fugindo da tradição que os maculava, no despertar da consciência, livres, magoados, não pelas auroras, como o barco de Rimbaud, mas pela vida dos antepassados que sentiam pulsar atavicamente em suas veias. E o último Léon foge também do que Maurício se tornou hoje com seus hotéis de luxo e prostituição de meninas indianas, num perpétuo fosso social e humano.

A Quarentena é um romance crítico, que busca as raízes das personagens; doloroso, que mostra a repulsa de Le Clézio  ao colonialismo com sua herança maldita, como expressa com todas as letras no autobiográfico O africano (2004). Mostra ainda o sofrimento do belo e rebelde poeta Rimbaud, que aparece, inicialmente, bêbado em Paris, expulso de todos os lugares –  mas amado por sua poesia ousada – ele também objeto da busca da memória de Léon;  e, depois, encontrado com a perna destruída, jogado numa cama de hospital em Aden, naquele porto oriental, onde viveu uma temporada no inferno, tão longe de casa. Rimbaud, que deu cores às vogais, que procurou trevos da sorte, sonhador e andarilho, que se perdeu na imensidão da África e de seus sonhos, é resgatado nesse romance na memória do compatriota Léon que, como ele, procura tão somente a liberdade.

 

Por Vera Lúcia de Oliveira