No jornal O Globo de ontem, 03 de setembro, escrevia Eric Nepomuceno – lembrando o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), que teria feito 80 anos naquela data: “A gente é o que a gente escreve, e o que a gente escreve é o que a gente é. Uma coisa depende da outra, está diretamente ligada”. O que me remete à frase-emblema de Mário Faustino: “Poesia e vida minha deverão seguir paralelas”. E, por extensão, me leva à minha querida e hoje já saudosa amiga, a poeta Lina Tâmega Peixoto (1931-2020), morta em Brasília na tarde de 1º de setembro, há apenas três dias: ela escrevia como se vivesse, e vivia como se escrevesse.

Na noite de 12 de abril de 2019, Lina Tâmega Peixoto lançou seu último livro de poemas, Alinhavos do tempo, no Centro Cultural Humberto Mauro, em Cataguases. Na ocasião, ela fez uma palestra intitulada “As projeções do Barroco na poesia de Cecília Meireles”, poeta de quem foi amiga. O  livro já havia sido lançado com grande sucesso em Brasília no final de 2018 e, em janeiro do ano passado, na Casa do Brasil em Lisboa.

A lembrança de Lina Tâmega Peixoto naquela noite – e do Planalto Central – leva-me a dezembro de 2017, quando de uma palestra sobre poema visual que eu fiz na Biblioteca Nacional de Brasília – com a honrosa presença de Lina. O diretor da Biblioteca, Carlos Alberto Ribeiro, a acompanhou até à porta quando ela estava de saída. E depois se desculpou comigo por ter deixado a sala por alguns minutos. Carlos Alberto disse então uma coisa que me deixou orgulhoso de minha querida amiga: “Lina Tâmega é uma entidade aqui em Brasília, foi uma honra tê-la conosco nesta noite”. Não me lembro ao certo se o que ele disse foi mesmo “entidade”, o que parece coisa do astral, mas se não foi deve ter sido alguma palavra afim, que Lina é mesmo “alto astral”.

Ela sempre me maravilhou com sua escrita delicada, elegante, escrita de fino trato – quer surgida de seus belos poemas, quer adornando um mero email do cotidiano: “Um abraço quase de sombra que o spot constrói entre meus dedos. Lina”. “Desejo que tudo em você fique subordinado à verticalidade e ao horizonte do mundo físico e às operações da inteligência emocional. E permaneça com a extraordinária lucidez de torcer as nuvens do desencanto para o clarão  do imaginário”. “Escrevo-lhe para deixar o cisco da letra, já que não houve o som do espírito. Depois, mando palavras. Cambalhotas de abraços, Lina”.

  

Fala, escreve, respira poesia

 Dois rios rimam a minha vida.

Um, desde nascida;

O outro, deságua no sobrenome.

Um, me tem cativa desde menina;

O outro, guarda a sombra de meu avô.

Dois rios: meus cinco sentidos.

 

Cataguasense moradora em Brasília desde os primórdios de sua construção, a professora universitária e ensaísta Lina Tâmega Peixoto é poeta de longo curso, e das grandes. Cidadã do mundo, profundamente marcada por suas raízes portuguesas, na verdade ela nunca se desprendeu totalmente do mundo-Cataguases, como afirma: “Ser mineira de Cataguases é o que não me faz ser estrangeira em Brasília, é o que me faz ser habitante de qualquer rua do mundo e nunca ser traída no meu jeito de viver”.

Sua trajetória literária inicia-se em 1949 ainda na mocidade de Cataguases, com a edição da Revista Meia-Pataca, ao lado do poeta Francisco Marcelo Cabral, o Cabruxa, seu (e meu também) grande amigo. Em 1953, surge o primeiro livro Algum dia. Somente 30 anos depois, o segundo, Entretempo, 1983.  Mais duas décadas sem publicar, quando em 2005 lança Dialeto do corpo. E, na sequência, num só ritmo, Água polida, 2007; 50 poemas escolhidos pelo autor, 2008; Prefácio de vida, 2008; Os bichos da vó, 2008; Entre desertos, 2014, e Alinhavos do tempo, 2018.

Foi esse Alinhavos do tempo, seu derradeiro livro, que aportou aqui em casa em dezembro de 2018 – na Cataguases margeada pelo Pomba, rio tão caro a mim quanto à minha amiga poeta. E, como sempre, trazendo a sutileza das metáforas tão características até mesmo em suas dedicatórias: “Para o querido amigo Ronaldo, os ruídos do coração que alinhavam o abraço de admiração e amizade que leva estas palavras até você, Lina”. A poesia assoma em cada gesto, em cada um de seus escritos – não só na força, nos muitos punti luminosi de seus poemas, motor por excelência da poesia, mas num ensaio, numa carta, num bilhete, num email, num zap, numa postagem qualquer. “Qualquer”, palavra errada: tudo nela indica extremo zelo, cuidado, acuidade – tudo emana resplendor, halos impregnados de uma poética de grande intensidade. Lina fala, escreve, respira poesia.

  

O boi (e a noite) no quadrado

Tão logo pude, registrei por email o recebimento de Alinhavos do tempo: Seu livro chegou às minhas mãos já há vários dias, mas ainda não agradeci porque queria ler antes, e ler pausadamente, como sempre degustando sua poesia, que me é muito cara. Assim, ele andou comigo já algumas vezes durante breves e recentes viagens. E eu viajei em suas páginas como sempre, e sempre com grande prazer.

Como, por exemplo, na narrativa para a construção do poema “O boi no quadrado”, num enquadramento em contra-plongée que remete ao cinema de Humberto Mauro. O cineasta gostava de enquadrar bois no alto dos morros de Minas, na contraluz do sol. Em sua infância, certamente você, Lina, nunca ouvira falar de Mauro, menos ainda dessa sua preferência por enquadrar bois no alto dos morros. Mas o alumbramento parece o mesmo, quase uma epifania:

“Uma menina canta alguma coisa. Súbito, entram no canto palavras sobre um boi no quadrado. A imagem deste boi, sozinho no alto do morro, dentro de um quadrado de arame farpado, visto há muitos anos, solta-se de sua prisão e vem ser o lamento da tristeza retido nos ossos da solidão. Esquecida a música por instantes, fica o poema. A percepção do mundo que me havia sido doada, foi um deslumbramento. (…) A partir daquele momento, a poesia segurou minha mão: “… não mexas no boi/ não batas no boi/ que o boi quer dormir/ sonhando que a noite/ subindo das noites/ sobe-lhe nas costas./ E lá se vão eles/ o boi e a noite/ atrás da saudade”.

Que coisa mais perfeita – disse eu ainda em meu email (sim, “papai trabalha por email”, como diz minha filha Ulla) – isso que você escreve no “pré-prefácio”! Isso: “preciso envelhecer o presente para recriar as coisas que se escondem dentro de mim e que resistem às delicadas sutilezas da imaginação, no fazer-se obra literária”. E, na sequência, a citação do poema: “Piso descalça histórias envelhecidas/ no ranger das tábuas”.

Acho que aí está, em perfeita conjunção, uma síntese de todo o seu livro, de toda essa delicada, sutil viagem “para dentro de seu quintal”, de sua casa às margens do rio Pomba, ali onde o presente é envelhecido com a imagem da infância-joaninha da menina aturdida com o desconcerto do mundo. “(…) Perguntei à minha mãe como fora possível eu ter mamado na joaninha. Ela riu muito e, me afagando a cabeça, revelou que Dona Joaninha, a mulher que morava em frente à nossa casa, havia me amamentado por uma semana. O estranhamento de antes se transformou no sopro da via possível de ser inventada e carreguei o mundo para dentro de um casulo… e me transformei em herança e poesia”.

 

Criação do mundo e seu naufrágio

Aliás, ao falar na casa de sua infância na rua do Pomba, no quintal que se debruça sobre o rio, e na Ponte Velha, surge logo aquela imagem belíssima: “uma carcaça de estrela, tombada do azul que o céu sustenta”.  E falar no “seu” quintal me leva (você nos leva, Lina) ao impacto da imagem (como se nós a víssemos enquanto lemos) daquelas formigas, cogumelos e etc que se abrigam “para que a água do regador/ venha cabisbaixa em sua fúria/ e não alveje a criação do mundo e seu naufrágio”. A criação do mundo e seu naufrágio: que força têm essas palavras-imagem no universo daquela menina que apreende o mundo a partir do quintal que é “seu mundo”. Seus poemas respiram poesia a cada página, Lina. E nos encantam, como mágica! Sim, que encantamento tamanho salta dessas (suas) palavras que adejam sobre “a clara, linda, alta e fina fala” (que belo e altissonante decassílabo!).

“Aquela escrita de coisa, coração e susto/ é o encanto faminto que entra entre falas adentro”. Drummond disse um dia ao ler um poema de O Centauro (1949), o primeiro livro do então jovem Francisco Marcelo Cabral, o nosso Cabruxa: “Aqui tem coisa”. Não é preciso que eu repita o dizer de Drummond, pois sei que sempre vou encontrar muitas e belas “coisas” em seus poemas. Mas quando me deparo com uma pedra-de-toque como “Volteio o corpo/ e a saia abre-se em varanda” sinto que a força dessa imagem só pode me levar a dizer que aqui tem não só “coisa”, mas um constructo de muitas e muitas belas coisas.

Ótima e mais que oportuna citação a que você faz de Walter Benjamin, aquilo da importância de se rememorar a vida (para o poeta) ser mais importante que a própria vida vivida. O filósofo Benjamin, pelo menos aqui, me remete também, de certo modo (paradoxal, ou não?), ao lema que Mário Faustino colocava como epígrafe de sua página “Poesia-Experiência” no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Volto a ele: “Poesia e vida minha deverão seguir paralelas”.

Ah, sim: não posso me esquecer de mencionar o belo estribilho de Cantiga IV: “Vou a cuidar da razão/ que do amor cuida o coração/ Ai, coitada de mim!”. Pois é, minha amiga, conduzida pelo poema, a literatura assoma de cada palavra que você escreve. Repito: você respira poesia – e da mais alta qualidade. Parabéns pelo novo livro e receba daqui das margens do rio Pomba (infelizmente não do seu quintal), o beijabraço mais afetuoso do amigo e admirador de sempre, Ronaldo.

 

Não há tremura

Lina foi sempre saudada por grandes nomes de nossa literatura, de Drummond (“Você alcança a maturidade poética com Entretempo, não há tremura ou indecisão de traço, tudo é firme, quando necessário, sutil, e sempre lúcido e ardendo de uma chama interior…”) a Manuel  Bandeira (“Você sabe pôr o infinito em duas ou três palavras muito simples”), de Marco Luchesi a Fábio Lucas, de Walmir Ayala a Affonso Romano de SantAnna, de Anderson Braga Horta a Fernando Py, de Salim Miguel a Astrid Cabral, de Joaquim Branco a Oswaldino Marques, de Ronaldo Cagiano a Cyro dos Anjos, de Tanussi Cardoso a Laís Correa de Araújo, de Angélica Torres Lima a Álvaro Alves de Faria, de Henriqueta Lisboa a Murilo Rubião, a Francisco Marcelo Cabral – esse enorme poeta que foi seu amigo Cabruxa – e a outros, muitos outros nomes, vamos dizer, “de proeminência” (palavra que Lina possivelmente evitaria, mas não encontro outra agora).

Ela prezava mesmo e mais que tudo as palavras de seu “mestre”, o professor e grande critico literário português Hernani Cidade, seu primo materno, a quem dedicava particular afeição: “A tua poesia resiste ao mundo das impressões e sensações porque é forte e soube suprir a delicadeza pelo excepcional do vigor. Parece que se desenha nos teus versos uma forma de contorno mais preciso, mais iluminada de luz da consciência, de mais funda vibração e ressonância”. Ou as palavras de seu tio, o intelectual e grande contista cataguasense Francisco Inácio Peixoto, para quem leu seus versos de mocidade: “Sempre gostei de sua poesia, onde encontro uma linguagem mágica que me enternece. Desde os seus vagidos iniciais, você nunca me desmereceu”.

  

Cabruxa: chama que ilumina os cimos

Nossos poetas de agora (e sempre) sobrevivem mais e cada vez mais – eu escrevia em 2010. E mais e mais vivazes e plenos de talento e vitalidade. Francisco Marcelo Cabral acaba de completar 80 anos, Joaquim Branco já entrou nos setenta desde maio e Lina Tâmega Peixoto já é, vamos dizer, avó – pois a gente não está aqui para entregar a idade de tão nobre dama. E todos os três atuais e atuantes, como poderemos ver no próximo dia 04 de dezembro, quando estarão lançando seus novos livros no Museu Chácara Dona Catarina. Cabral, “Campo Marcado”. Joaquim, “Janelas de Leitura”. E Lina, “Os Bichos da Vó”. Uma festa, um orgulho para Cataguases: não é toda cidade que pode contar numa mesma e única noite com a presença de seus três grandes poetas apresentando suas obras mais recentes.

Mas afinidade, afinidade mesmo, era a de Lina com o poeta Chico Cabral, o Cabruxa: “Penso que a visão crítica e a apreensão do discurso estético – ela escrevia no prefácio de um dos livros de seu querido amigo – “podem constituir um novo objeto poético na obra Campo marcado, porque minhas palavras irão, desmesuradamente, ampliar a relação de amizade e imensa admiração que vai se projetar no mundo do sensível, da emoção e da persuasiva sedução, recriado por Francisco Marcelo Cabral, em seus poemas”.

Em Dialeto do corpo  Lina cita Paul Valéry em epígrafe – Celui-lá qui veut écrire son rêve/ se doit d’être infiniment éveillé –  e pede um prefácio a seu grande amigo Cabruxa, que escreve:

“Ao me meter a fazer este ´pequeno prefácio´ ─ ´em cima´ dos originais, ainda não definitivamente estabelecidos pela Autora, trabalho ´no escuro´, no meio de um jogo de agulhas de tecer e facas afiadas, e desfruto de uma experiência rara: a de acompanhar o processo de produção de uma poeta que, ao mesmo tempo – ´desde 1970´, como me revela –, repete para si mesma o paradoxo de Valéry – Celui-lá qui veut écrire son rêve se doit d’être infiniment éveillé – (“Envio a frase do Valéry com que pretendo abrir o livro e a repito muitas vezes. Me diga se gostou dela? É importante para mim saber isso”).

Com toda a delicadeza

“Certa vez, em carta – continua Cabruxa – lhe disse de Entretempo e aqui repitoVocê consegue – é incrível! – uma economia, uma intensidade, uma contundência. Não é assim que os miles de poetas estão escrevendo por aí… para serem esquecidos. Eu mesmo me comparo a você e me rendo. Você tem a chama cristalizada que ilumina os cimos e deixa os vales na umidade e na penumbra. Penumbra talvez não seja a palavra, mas a ideia é de luz minimal, que solicita à pupila o esforço ativo de ver.

“Às vezes sou tentado a ousar uma leitura contextual de seus poemas. Os parentescos que intuo, a radicalidade de uma autoria original, a “voz”, “plana, seca e desesperada” que você empresta ao seu ser-poeta, cuja feminilidade – eu diria: carnal – é explícita e voluptuosa, sem perda da disciplina de ofício que dá ossatura ao seu texto (“o róseo grão da poesia ata em feixe minhas palavras”). Mas não me permito pairar tão alto. Porque não sei se minha admiração e afeto por você não embotaria definitivamente o olhar crítico sobre uma poeta que estoura os limites das Minas, com toda a delicadeza, quase pedindo desculpas por o fazer”.

 

Sustos na metade de tudo

“Arremessada ao pretérito espaço, a varanda é uma trama de talos de madeira algemados com a bainha do muro que a solevanta do capinzal. O arvoredo em cochichos, os cacos de esmeraldas, a curva da chuva que põe no colo a paisagem, o sol-posto do consumado encontro à beira de mim, tudo é florescer do acaso, tudo são sustos da memória. Existo na metade de tudo, na metade de nada, e procuro no outro lado do percurso o jogo ambíguo das palavras.  A música vibra o ar que bica e estala as trêmulas rendas da voz. Desembrulho outras palavras e extingo a noite – plana, seca e desesperada. Entreluz como tranças de sol o sibilo dos tons na garganta”.

Até aqui, esta ciranda quem me deu foi Lina. Que não mora nas areias de Itamaracá, mas – olê-olá! – onde a poesia faz da sonoridade o seu estar.  Tessitura que entreluz como um refrão dourado, tranças de sol, a poesia de Lina Tâmega Peixoto é susto que nos solevanta, é frase (jamais) igual a outra frase, é música e vibra o ar que bica e estala as trêmulas rendas da voz.

E repasso a vida./ Extasiada, sem rumo, junto à fronteira do nada,/ engendro um refrão dourado/ para recitar, luxuriante,/ com febre e desmaios,/ uma frase/ igual a outra frase./ Gêmeas em mim. Crase.  Assim, de sopetão, surge esse susto, essa “crase”, esse súbito frear da frase, esse verso que lembra o Drummond daquele “Stop. / A vida parou”. Lina sempre surpreendente.

Como surpreendente – relâmpago, metapoema, objeto-poesia – é esse primor a mim dedicado em seu livro Dialeto do corpo: “e o poema se desfaz com o vento”Fecho com esse suave ventar a primeira parte desta postagem dedicada à minha amiga. Semana que vem Lina volta – Lina vai voltar sempre.


Alquimia do verso

Para Ronaldo Werneck

Procuro um objeto

para ser poesia.

meia-tristeza, meio-amor,

meio-mundo, meia-metafísica

serviriam para sustentar o poema.

 

Piso descalça o movediço

ofício da escrita

e procuro o limite da estrofe.

Não ultrapasso o encantamento

que fabrica a alquimia do verso.

Cansada, busco a palavra

na artimanha da respiração.

E o poema se desfaz com o vento.

 

Lina Tâmega Peixoto

Brasília, 2005