Já não me lembro quando foi que conheci Sérgio Sant’Anna, o esplêndido escritor que a gripezinha bolsonara levou na madrugada do último domingo. Com certeza, no começo dos anos 1960, época em que sua família, carioca, morava em Belo Horizonte, onde ele viveria até 1977, quando voltou para o Rio. Na pequenez e mesmice do nosso bairro São Pedro, a gente fatalmente se topava, mas, numa altura da vida em que três ou quatro anos são abismo entre dois moleques, sequer nos cumprimentávamos. O “Escovão”, como o Sérgio era chamado – andava em moda o corte à escovinha, que punha os cabelos espetados para o alto –, fazia parte da turma da Nova Mercearia, na Major Lopes (a rua do futuro Frei Betto e da dentucinha Dilma, ela mesma, a futura presidente da República); era um pessoal mais velho que minha patota adolescente, a turma do Butantan, assim autobatizada porque no basquete não nos considerávamos menos do que “cobras”.

Fomos trocar nossas primeiras palavras, o Sérgio e eu, em 1965, quando entrei na Faculdade de Direito, ele já no 4º ano, casado com minha parenta Mariza Werneck Muniz. Em pouco tempo estávamos conjuminados, pertencentes que éramos à família informal dos que ali chegaram não em busca de luzes jurídicas, mas depois de haverem eliminado as demais carreiras. Arildo de Barros, por exemplo, colega do Sérgio, caminharia para ser o ótimo ator que é, hoje no Grupo Galpão. Fernando Brant, o letrista instantaneamente consagrado com Travessia, em parceria com Milton Nascimento – Milton, não: Bituca, moço franzino que, dentro de um terno azul-marinho, soltou a voz como crooner no meu baile de calouros. Naquele grupo de gente mais ou menos sem rumo profissional havia espaço para alguém focado como o José Francisco Rezek, que, sem o José, chegaria às mais altas cavalariças da magistratura, como ministro do Supremo Tribunal Federal e juiz da Corte Internacional de Haia, e, entre uma coisa e outra, ministro da Relações Exteriores.

Bom contista, o Rezek integrou nosso time de nove prosadores e poetas que fizeram sua estreia em livro – chamemos assim uma publicação mimeografada a que o José Márcio Penido, um dos autores, deu o nome Porta:, com esses dois pontos, lançada em dezembro de 1966 por uma imaginária Edições Palavra. Ou muito me engano ou foi ali que Sérgio Sant’Anna publicou pela primeira vez um conto, “Desterro” – que, rigoroso, não incluirá entre os quinze de seu livro de estreia, O sobrevivente, editado por conta própria em setembro de 1969. Cada vez mais exigente, desses quinze Sérgio não vai aproveitar mais do que sete quando, em 1997, organizar para a Companhia das Letras o alentado (719 páginas) Contos e novelas reunidos. 

O rigor, exatamente, era uma das marcas do escritor Sérgio Sant’Anna, e sou testemunha do quanto ele hesitou antes de pôr os pés no ofício, numa fase da vida em que a maioria dos autores não sossega enquanto não providenciar estreia tipográfica. Já tinha um bom caminho andado como contista quando chegou ao livro, aos 28 anos – a mesma idade, me ocorre agora, com que o não menos rigoroso Carlos Drummond de Andrade publicou Alguma poesia, em 1930. Sérgio não precisou, como alguns afoitos, envergonhar-se na maturidade do que publicou na juventude. A partir do momento em que se reconheceu escritor, fez da literatura a coisa mais importante em sua vida, e assim foi até o final, com fidelidade e aplicação exemplares.

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Nascido na porta da faculdade, e alimentado pelo fato de morarmos na mesma quadra, meu convívio com Sérgio Sant’Anna passou a ser diário, ou quase, depois que o contista Murilo Rubião criou, em setembro de 1966, um Suplemento Literário semanal, como encarte do Minas Gerais, o diário oficial mineiro. Instalada na mesma sala da Imprensa Oficial onde Drummond trabalhou de 1929 a 1934, quando se mudou para o Rio, e que por isso ganhou seu nome, a redação do semanário não tardou a se tornar um animado entra-e-sai de escritores, fossem eles veteranos ou moçada em começo de carreira – o que não se deu por acaso, pois Murilo, inspirando-se em conselhos de Mário de Andrade e Manuel Bandeira à turma do jovem Drummond, abriu a publicação às mais diversas gerações, de Minas ou não, sem com isso descuidar do critério qualidade. Era comum topar ali, misturados a frangotes da literatura, com autores graúdos como os poetas Emílio Moura, Bueno de Rivera e Affonso Avila. 

Como publicação e como ambiente, o suplemento de Murilo tornou-se chão comum para os mais diversos grupos de escritores jovens – turmas que, sem prejuízo das características de cada uma, acabariam constituindo um contingente maior, no qual se grudou de modo natural o rótulo Geração Suplemento. Entre os ficcionistas, vários deles reunidos em 1971 na antologia Contos Gerais, não hesito em destacar Luiz Vilela, Jaime Prado Gouvêa – e, naturalmente, Sérgio Sant’Anna. 

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Bom demais da conta

Bem sei que a efeméride, por assim dizer, só a mim poderia interessar, mas peço licença para deixar aqui o modesto registro: na próxima sexta-feira, dia 15 de maio, faz cinquenta anos que tomei em Belo Horizonte um ônibus da Viação Cometa para São Paulo, tangido por um emaranhado de motivações que só no tempo daria conta de compreender. Durante dois anos tivera convites do Jornal da Tarde, publicação que desde 1966 revolucionava o texto e o visual do jornalismo brasileiro. Naquele momento, porém, não havia convite algum – e, não fossem os bons ofícios do amigo Gilberto Mansur, que lá trabalhava e me recomendou, talvez nem tivesse conseguido fazer um teste e conquistar vaga como “foca”. De olho no Rio, até pouco antes destino quase obrigatório para escribas e jornalistas de Minas, vim tentar a sorte no fumacê paulistano, passar um tempo e, se tudo corresse bem, bater asas rumo ao litoral carioca. Passei um tempo, cinquenta anos se passaram, e aqui estou, sem vontade alguma de arredar pé – sinal de que, para mim, a coisa, como se diz na terra onde nasci, correu bem demais da conta.