Óculos escuros, cigarro à mão, poucas palavras, um sorriso irônico e o jeito displicente de intelectual francês, Sérgio Sant’Anna passava todas as tardes pela redação do Suplemento Literário. Estávamos no início dos anos 70, e a sala que ocupávamos na Imprensa Oficial era a mesma na qual havia trabalhado o poeta Carlos Drummond de Andrade, cerca de quatro décadas passadas. Era uma parada no caminho do “Salloon”, o bar da rua Rio de Janeiro onde ele se encontraria com o poeta e jornalista Fernando Brant, numa roda de cerveja e boa conversa. A presença de Sérgio Sant’Anna acendia ao seu redor uma aura de discreta, mas indisfarçável admiração lançada pelo olhar dos redatores, colaboradores e outras tantas pessoas que costumavam frequentar aquela movimentada oficina das letras.

Tendo estudado na França e passado uma temporada nos Estados Unidos, nele eram evidentes as marcas dos soixante-huitards que agitaram Paris naquele ano que não acaba nunca e o eco da batida beat dos poetas da Califórnia, anunciando rupturas e transgressões. E era isso que emergia em seus textos, com surpreendentes narrativas que se diferenciavam totalmente da opulenta produção de contos daquela geração mineira assinalada pela mania da história curta. 

Sérgio Sant’Anna aparecia, desta forma, como uma figura incomum na miríade de jovens contistas, e assim aconteceu desde o surgimento das revistas “Porta” e “Estória”, que acolheram suas primeiras publicações. Dois outros autores se destacavam, no campo da arte em que pontificava Murilo Rubião, o criador do Suplemento Literário: os contistas Luiz Vilela e Roberto Drummond. Vilela reciclava, em dimensões trágicas, os traumas recorrentes nas amarguras da província profunda, da família dilacerada, da angústia sem saída. Seu livro “Tremor de Terra” foi recebido com entusiasmo. Afinal, era um escritor que começava de modo estupendo, com a força de quem vinha para permanecer. Drummond, encantado pelo realismo mágico dos hispano-americanos que explodiam na Europa, parecia sonhar com a matrícula nesse fenômeno e experimentava fórmulas ao gosto do boom  e dos hits da cultura pop. O prêmio do famoso Concurso de Contos do Paraná, em 1971, conferido ao conto “A Morte de D. J. em Paris”, levou-o ao máximo da excitação e à certeza do esperado sucesso em escala maior.

Entre esses polos, avançava o autor de “Notas de Manfredo Rangel, repórter”, disparado em intensa produção. Oferecia aos leitores os atrativos de uma coisa nova, por criar com efeito uma novidade em termos de literatura brasileira. No seu texto, percebeu-se logo a elaboração de uma linguagem pessoal e inovadora. O processo criativo por ele desenvolvido absorveu lições da prosa enxuta e contundente de Nelson Rodrigues, como da observação instigante de Rubem Fonseca, do desabusado absurdo de um Campos de Carvalho e das trepidações da ficção de Clarice Lispector. A escrita jornalística revelou-se uma fonte generosa; o despojamento, um corte de estilo; a temática, um estranhamento perturbador. O resultado era diverso do que se lia comumente na produção dos novos do período.

A cabeça de Sant’Anna sempre foi cosmopolita, e a vivência em outros países influenciou a literatura de um morador de Belo Horizonte, nascido no Rio de Janeiro e habitante de várias metrópoles. Diversamente de seus companheiros de Suplemento, ele praticava um distanciamento crítico tanto do ambiente literário quanto de sua própria obra, ao ponto de o auto-questionamento e a autobiografia tornarem-se parte de sua criação. A música de João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil contribuiu para a buscada depuração, tanto como a poesia de João Cabral de Melo Neto. Nas artes plásticas, ele estaria próximo de Mondrian e Klee. Numa daquelas tardes, Sérgio chamou-me a atenção para um pedaço de papel casualmente encontrado nos arquivos da Imprensa Oficial, com um texto do arquiteto Lúcio Costa sobre um monumento rodoviário que lhe teria sido encomendado pelo governador Israel Pinheiro. Ele redigiu uma nota, não assinada, que acompanhou o texto na capa da edição seguinte do Suplemento, sensibilizado pela palavra poética do urbanista de Brasília, enxuta e exata como um poema de João Cabral ou de Joaquim Cardoso.

Se o clima de thriller policial da ficção de Nelson Rodrigues e de Rubem Fonseca fascinava Sérgio na concepção de seus enredos, foi também no cinema que ele encontrou sugestões e referências. Os movimentos de câmera parecem conduzir o escritor, ora tirando proveito da função encantatória do travelling, ora valendo-se do uso da lente day for night para criar a “noite americana”. O filme noir enriqueceu a cinemateca do contista, assim como os ícones da contra-cultura projetaram-se nas paredes e muros do percurso que então atravessava. O regime ditatorial de 1964, a tortura e a censura apareceram em understatements, na atmosfera de transe em que trafegam as personagens que não se deixam cair em armadilhas do poder político ou literário. Não escaparam a Sérgio Sant’Anna o primado àquele tempo conferido a Oswald de Andrade, as reverberações do tropicalismo, o desbunde do Teatro Oficina zecelsiano, a agudeza das transcriações poéticas de Haroldo de Campos. E as rupturas e transgressões por que passava o mundo, em meio à ruína dos preconceitos, o fracasso das interdições, a libertação de mulher, o movimento gay, o não à guerra do Vietnam. 

A juke-box de cada esquina americana era um fetiche para o narrador. Sérgio Sant’Anna parecia ouvi-la tocando Bob Dylan, enquanto traduzia Donald Barthelme para o Suplemento Literário e inventava novas histórias. Roberto Drummond inquiriu-me sobre o fato de eu, como editor, publicar tantos contos do autor do romance “Confissões de Ralfo”, e eu o provoquei dizendo para trazer-me os dele que o Suplemento os acolheria com igual prazer. Editamos um conto seu e fizemos duas entrevistas com você, disse ao Roberto, e nenhuma com o Sérgio, porque ele prefere publicar contos. Roberto Drummond e eu, colegas de jornalismo e amigos, criáramos o hábito fraternal da esgrima.

Havia uma emulação, e é natural que houvesse ciúme, como se registra em quase todos os círculos de literatura. No entanto, de maneira geral, prevalecia a certeza de que Sérgio Sant’Anna era a principal personagem daquele instante e de sua geração. Luiz Vilela nunca fez a chamada política literária ou procurou projetar-se, e à sua obra. Retirou-se para Ituiutaba, a cidade natal, onde continuou a escrever, porém apartado dos círculos de difusão e comunicação. O isolamento de certa forma impediu que seu trabalho ampliasse e conservasse o reconhecimento merecido. Roberto Drummond faleceu prematuramente, em 2002, levado por um enfarte em momento de comoção pelo futebol, que tanto o apaixonava. Atormentava-se e sofria com o desafio da criação e o destino das obras, mas teve tempo de colher elogios e aplausos, sobretudo quando lançou o romance “Hilda Furação”, popularizado pela televisão. Sérgio Sant’Anna fixou-se no Rio de Janeiro, e não perdeu o ritmo que lhe proporcionou a publicação de numerosos volumes. 

Avesso ao proselitismo e à exibição, viu seu nome crescer naturalmente. No quadro nacional e no prisma internacional, ele está entre os melhores escritores brasileiros do nosso tempo. Terá chegado a essa posição com absoluto ceticismo, outra característica de sua personalidade. Uma ironia decorrente de seu modo blasé talvez pretendesse protegê-lo ou resguardá-lo, fora da esfera da política literária. Irmão e pai de escritores, a literatura é para ele como a vida, porque sempre a assumiu intensamente. Escrever seria tão essencial quanto um cigarro aceso. O tempo de violência e barbárie que se desvelava engendrou o esquecimento do passado e abolição das perspectivas do futuro. O escritor penetra na tragédia contemporânea por meio de simulacros, entre o ambíguo e o contraditório. A leitura de sua obra oferece a estranha sensação do espanto diante daquilo que não conseguíramos até ali perceber. 

Nunca será de fato uma surpresa para os grupos articulados de cada geração a trajetória superiormente exitosa de um de seus integrantes. Na maioria dos casos, logo se identifica, no seio de cada grupo, a personalidade que sinaliza, vagarosa ou prontamente, o carisma ascensional de seu talento. Assim como a geração de 1920 assistiu à pressentida elevação de Carlos Drummond de Andrade, 1930 aclamou Cyro dos Anjos. Os vintanistas da década de 40 viram a proeminência de Otto Lara Resende. A década de 50 teve várias promessas e apostou em Silviano Santiago. No final do seguinte decênio, despontou  Luiz Vilela. Os autores dos anos 70 vão completar meio século de caminhada acompanhando Sérgio Sant’Anna como a mais significativa expressão literária do período. Que sendo assim para os mineiros, com os quais ele conviveu e compartilhou, também o é para o Brasil, que o considera entre os melhores da atualidade. Para os que o acompanhamos desde os primeiros sucessos, é prazeroso constatar que tínhamos razão, naquela eclética sociedade de contistas principiantes. Praticamente todos sentíamos a sua primazia, na certeza do alto voo ali iniciado.