“A estrada de ferro passava do outro lado do rio. Do engenho nós  ouvíamos o trem apitar, e fazia-se de  sua passagem uma espécie de relógio de todas as atividades: antes do trem das dez e depois do trem das duas.”

( José Lins do Rego, “Menino de engenho” )

“O trem era para mim uma novidade. Eu ficava na janela do vagão a olhar os matos correndo, os postes do telégrafo, e os fios baixando e subindo. Quando chegava numa estação, ainda mais se aguçava a minha curiosidade.”

( idem, ibidem )

No meio do tiroteio da guerrilha da política e do  tradicional sectarismo ideológico, com grossa   fuzilaria  pra  todo lado, as  ditas grandes revistas semanais  costumam trazer  matérias interessantes. Por exemplo, na edição de 15-7-2020 a “Veja” enfoca o mais moderno trem-bala do Japão, o  “dernier  cri” em veículos ferroviários.

Que trem é esse, sô?, como diria o mineiro, curioso. É trem de muita sustança, mineiro. Trata-se do  N 700 S ( parece nome de planeta recém-descoberto pela Nasa) , tido como “o mais  seguro e mais veloz” do mundo.  Essas máquinas de alta tecnologia  dispensam até a obsoleta figura do maquinista.  Pra quê maquinista ?  A possante engenhoca de grande  porte  parece um robô-gigante, é branca, brancona, e feia, isto é, sem graça, sem apelo estético. Parece uma imensa lagarta branca ­ – com todo o respeito. Mas é coisa de alta tecnologia, eficiente, operacional. Anda a 360 km/ h ! Um espanto para um  cronista  velhote  dos tempos do bonde e do ônibus-jardineira. Homessa: 360 km/h !  Mais rápido que o trem-bala da China de Xi-Jinping.  Pois esse tal  N 700 S ( o S é de supremo, segundo  a Central Japan  Railway ), de linhas aerodinâmicas, resiste até a terremotos. Conta com o mais sofisticado e eficaz sistema de controle automático e frenagem e é movido a bateria de lítio.

Tudo bem, muito que bem. Parabéns aos japoneses e vida longa ao Imperador  Naruhito !

Mas meu encantamento  é pelo velho trem de ferro das estradas brasileiras, a  maria-fumaça que apitava  com alarde  e soltava fumaça, bebendo água e fazendo baldeação ali e acolá. Tinha lá o seu charme. Essa locomotiva antiga era de fabricação inglesa e foi trazida ao Brasil, nos seus primórdios, pelo culto Imperador D. Pedro II, amante das novidades, como a fotografia e o telefone de Graham Bell, com  quem ele conversou nos Estados Unidos, se não me engano em 1876.

No meu tempo de menino viajei várias vezes nos trens da EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), indo de Mariana para BH ( com baldeação em Burnier) ou para as fazendas de amigos de meus pais. O trem deixava a plataforma  às cinco  horas da manhã, às vezes sob a neblina do inverno. Além do apito estridente  a máquina ostentava   um  pequeno sino dourado que badalava alegremente.  O guarda-pó branco ( defesa contra as fagulhas de carvão quente) era  de uso geral. Quando íamos de férias para as fazendas, o percurso era completado por cavalos de manso trote, o que era para nós um ingrediente a  mais na aventura. Há poesia nesses vetustos trens, a locomotiva puxando os vagões  de passageiros ( um deles vagão-restaurante)  e  os furgões de carga.

***

O saudoso poeta Luiz Carlos de Oliveira Cerqueira era encantado por trens de ferro. Na infância, morou perto de  uma estação, lá no Estado do Rio de Janeiro. Eu conversava  muito com ele sobre esse tema que nos seduzia. O Cerqueira dedicou poemas ao trem, como o  “Quintilhas nº 10, op. 318”, de que destaco este trecho:

“ Ah, já ouço o apito do meu trem de ferro.

De calças curtas eu brincava na estação,

tinha  de quatro a cinco anos, se não erro.

Feliz lembrança a que tanto me aferro.

Pena que o trem partiu e retornou  mais não.”

No seu derradeiro livro, intitulado “Nas sombras do meu solar”

( lírico título) , o Cerqueira estampou  poemas  inspirados pelo nosso querido veículo, tais como “Trem de ferro”,  “Poema nº  221, op. 247,

nº  1” e “Quadras  nº 34, op. 259 ( maria-fumaça)”.

Outro poeta, o mineiro/ carioca Paulo Mendes Campos, na sua crônica ( na verdade, um prosoema)   “Trem de ferro”, deixa a nostalgia correr solta como o vento nas várzeas onde avançava a traquitana mágica. Quando menino, ele morou na cidade mineira de D. Silvério, onde seu pai, Dr. Mário, trabalhou como  médico. Convivi com o Dr. Mário Mendes Campos, médico e escritor, em Belo Horizonte, na Livraria Itatiaia, que ele frequentava assiduamente. Está aí o escritor Pedro Rogério Moreira, que não me deixa mentir. Filho do escritor Vivaldi Moreira ( Presidente Perpétuo da Academia Mineira de Letras) e sobrinho do poeta e livreiro Édison Moreira, Pedro Rogério também se tornou amigo do Dr. Mário, ensaísta ilustre,  especialista em Literatura Hispano-Americana e membro da Academia Mineira de Letras.

Eis  alguns  trechos da crônica de Paulo Mendes Campos:

“ A infância era ferroviária. Meninos de meu tempo iam ser maquinistas. Pé descalço no calor  do trilho. (…)  Entro no túnel com o sobressalto  musical de quem começa um improviso. A penumbra, menos inteligível,  mais alusiva que a luz.  Divaga nessas entranhas um divertimento perverso de túmulo. Mas a boca de saída berra pelo sol (…) Olhava carregador, operário,  menino do pastel. Pasmado, erguia a cara para o chefe do trem. O sino repicava à entrada do monstro. Passava um tempão espiando  o desvio automático. Me falava de outro mundo o pica-pau do telégrafo. Trocaria  minhas  moedas pela lanterna  que o gigante de impermeável  esburacado carregava na   tarde de aguaceiro. (…) Sentir na pele a locomotiva. Sujar-me de graxa e carvão. Fui foguista.  Guarita. Engate. Luz na curva. Sem saber até hoje  decompor esse sortilégio. Quase consumido, subo os vagões sem dizer  nada, encantado ainda.”

Encantados também  ficamos todos os que, na infância e na adolescência, tivemos  a ventura ( e a aventura)  de viajar em trem de ferro.  É uma encantação, como bem diria a poeta Lina Tamega Peixoto.

Ficou famoso o poema de Ascenso Ferreira, intitulado “Trem de Alagoas”,  que, segundo o mestre cronista Edmilson Caminha ( que consultei ), está no livro “Poemas de  Ascenso Ferreira”, publicado em Recife pela Nordestal Editora,1981. No ritmo da locomotiva, Ascenso Ferreira faz o balanço ferroviário, se me  não  falha a memória:

“Vou danado pra Catende,

vou danado pra Catende,

com vontade de chegar.”

O grande poeta e cronista Manuel Bandeira também embarcou nesse trem antigo.  Sorte dele e  nossa, porque nos deixou delicioso e  singelo poema inspirado  pela máquina fantástica. Tem uma força encantatória seu poema “Trem de ferro”, que reproduz, com recursos  de  onomatopeia, a toada da composição-capitânea arrastando o comboio sobre os trilhos. Transcrevo  trechos:

“Café com pão

Café com  pão

Café com pão

 

Virge  Maria   que foi isso  maquinista?

(…)

Oô…

Foge, bicho

Foge, povo

Passa ponte

Passa poste

Passa pasto

Passa boi

Passa boiada

Passa galho

De ingazeira

(…)

Vou depressa

Vou correndo

Vou na toda

Que só levo

Pouca gente

Pouca gente

Pouca gente”

O contista e poeta Ronaldo Cagiano ( nascido em Cataguases e hoje morando em Portugal ), no seu recente livro “Cartografia do Abismo”, nos regala com o  antológico poema “Conversa com Adélia Prado”, em que o astro  ou estrela  é o trem de ferro. Eis um trecho:

“A maria-fumaça,

incandescente animal sem metafísica,

conhecia a mecânica de meus sonhos

quando deixava a plataforma

da velha estação

povoada de adeuses.

 

Na  sintaxe do chegar e partir

aquela locomotiva

ensinou ao menino

a viajar pelas palavras.”

 

 

O trem também sacoleja e apita nas páginas de Eça de Queiroz. Está lá, na obra-prima que é  “A cidade e as serras”:

“ O trem  arquejava, rompendo o vasto vento da planura desolada. E a cada apito  era um alvoroço. Medina?…Não!” (…) A sineta badalava, moribunda. De novo fendíamos a noite e a borrasca.”

Esse  trem  levava Jacinto de Paris  à bucólica  Tormes, em Portugal, atravessando a Espanha, em companhia do fraternal amigo Zé Fernandes   Lorena de Noronha e Sandes, da vila de Guiães.

 

Não é discreto o charme do trem; pelo contrário, ele é barulhento  e às vezes espalhafatoso, mas  sua aparência tem um quê de romântico, de idílico fin-de-siècle XIX. É o caso dos trens que partiam de São Petersburgo, no inverno,  com personagens de Leon  Tolstoi; do  elegante Expresso do Oriente do romance policial de  Agatha Christie; do trem que participou da volta ao mundo em 80 dias, no clássico romance de Jules Verne, de que destaco este lance: “Algum tempo depois, Phileas Foog, sir Francis Cromarty e Passepartout estavam instalados em um confortável vagão de trem, no qual a Sra. Aouda ocupava o lugar de honra, a caminho de Benares.”

Sim, um charme barulhento, mas, de qualquer forma, um charme, uma novidade fumacenta, às  vezes correndo rente a tropas e boiadas, como  víamos nos filmes  de far-west.

***

Mas voltemos no tempo, aqui no Brasil, deixando em paz Tolstoi, Jules Verne, Agatha Christie e Eça de Queiroz, com seu  Jacinto de Tormes a gozar dos prazeres  rurais  da  pachorrenta   província lusitana.

Em Mariana, nos fins da década de 1940 e inícios de 1950, entro no trem que nos levará à fazenda São João, de Sr. Nico Mol, ou à fazenda São José, de D. Zinha Mol Rôla, ou ainda à fazenda de  Sr. Bilú de Castro, no Crasto  (assim mesmo, Crasto). São cinco horas  da manhã na  estação inaugurada em  1914. A máquina bufa e apita; seu pequeno sino dourado toca, tilinta. A composição vai partir. Será uma  simples viagem, mas iluminada por magia e encantamento,  até de aventura.

Na fazenda, seja ela qual for, vou andar de carro de boi,  beber garapa de cana ( ao natural, pois ainda não havia geladeira), correr no curral e no paiol, ir ao moinho,  comer queijo, pão de ló  e broa, andar pelo monjolo e pelo engenho  de rapaduras e  doçaria, com destaque para a inefável goiabada-cascão. E vou  zanzar pela vasta cozinha com seus olores de boa comida, com  pitéus  como lombo de porco ou frango ao molho pardo, com angu  ( faço questão do angu, que, aliás, ali não falta ).

E, à boca da noite, depois  do jantar, vou, menino de calça curta, escutar conversas de assombrações, almas penadas,  assustadores ruídos de correntes na antiga senzala, sentado ao redor  da fogueira tribal. Na fazenda de Sr. Nico Mol, João Cassiano, um velho  empregado, afrodescendente, é o maior contador dessas histórias,  com seus olhos  arregalados e sua voz cava  de cemitérios, de catacumbas sombrias…É um mestre em meter medo noturno nos ouvintes, enquanto a fogueira estala, perto do curral. Um de seus  casos é o das três gameleiras, grandes árvores mal-assombradas, que todos evitavam topar depois do cair da noite, cruz-credo, esconjuro, muita gente  já  viu  estranhas coisas  noturnas naquela curva da  estrada para Barra  Longa…

Vou dormir com um medo danado, enquanto, em certas noites, a chuva bate nas vidraças das grandes janelas coloniais, naqueles ermos de fraca luz elétrica e muitos lampiões de querosene.

Uma encantação, Lina, uma encantação…