O jornalista e escritor Nirlando Beirão morreu em São Paulo, no dia 30 de abril, em decorrência de enfermidade agravada paulatinamente, nos últimos dois anos. Mineiro de Belo Horizonte, viu-se cercado de admiração e reconhecimento em sua carreira na imprensa. Mas, de repente, a doença tolheu-lhe os movimentos e o submeteu a sucessivas restrições e perdas. Amparado pela mulher, a jornalista e escritora Marta Góes, amorosamente dedicada, ele enfrentou o drama com serena resistência, consciente de que o fim estava inapelavelmente próximo. 

Foi assim que decidiu empenhar-se na biografia lançada no ano passado, pela Companhia das Letras. O leitor acompanha a sua movimentada trajetória por meio de um fio condutor surpreendente, já que Nirlando Beirão resgatou a história de amor vivida por seus avós paternos para cadenciar a narrativa do desfecho de sua vida. O menino que desvenda o segredo do caso do padre e a moça está contido no homem pleno sobre o qual incide um raio trágico do destino. À luz desse fulgor, ele procura esclarecer o fenômeno da existência, certo de que qualquer maneira de amor vale a pena, como canta Milton Nascimento. 

Ao dar ao livro o título de “Meus começos e meu fim”, o autor entrecruza as linhas do tempo e com igual naturalidade narra o princípio e o desfecho da jornada. Encara a morte com olhar compassivo e celebra a “vida toda linguagem” no domínio da escrita e da construção literária. Versos de Sophia de Mello Breyner Andresen sejam conforto para nós que dele nos despedimos: Quando a manhã brilhar refloriremos/ E a alma beberá esse esplendor/ Prometido nas formas que perdemos.

A propósito do livro, escrevi na ocasião do lançamento a resenha aqui transcrita. É uma homenagem ao amigo que cultivei desde a infância e à querida Marta Góes, com quem ele compartilhou intensamente “aquele dom que a morte cedo nos cancela”, como Ronsard se refere ao amor, na tradução de Sérgio Duarte. Nirlando não chegou ao fim, porque o texto nunca termina. A saga do autor recomeça em cada linha e na palavra escrita ele vive para sempre. 

Eis o texto: Em palestra admirável proferida em Belo Horizonte, em 1977, Antonio Candido destacou o gosto do autor mineiro pela autobiografia, ao focalizar a produção de três deles: Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Pedro Nava. O foco principal demonstra como os mineiros saltam do particular para o geral, sempre em busca da universalidade da linguagem poética.

Do poeta itabirano, o exemplo fixa-se em “Boitempo”, lançado em 1968. Para o crítico, Drummond usa “o seu verso seco e humorístico, o seu firme golpe de vista e sua capacidade de escorço” para construir, “num clima de poesia e ficção, a verdade que é o mundo do eu, e o eu como fruto do mundo”. Murilo Mendes faz autobiografia declarada em “A idade do serrote”, também de 1968. Mas, prossegue Candido, a prosa tem um ímpeto de tal forma transfigurador que se instala dentro da poesia, “o que alarga o restrito elemento particular de recordação pessoal”.

Ao analisar os dois primeiros livros de Nava, “Baú de ossos” (1972) e “Balão cativo” (1973), Antonio Candido afirma que “a autobiografia desliza para a biografia, que por sua vez tem aberturas para a história de grupo, da qual emerge em plano mais largo a visão da sociedade, traduzida finalmente em certa visão de mundo”. A transfiguração da autobiografia resulta do “tratamento nitidamente ficcional, que dá ares de invenção à realidade, transpondo para lá deles mesmos o detalhe e o contingente, o individual e o particular”.

Com essa acurada percepção de Antonio Candido, posso reconhecer, na autobiografia de Nirlando Beirão, recentemente lançada – “Meus começos e meu fim” – a emergência dos elementos e das dimensões que seus ilustres conterrâneos gravaram nas obras abordadas pelo mestre da crítica literária. Está ali o Narrador – e Candido pensou em Proust quando passou a assim nomear os três autores – que se desvela, ingressa na vida dos ancestrais e apela para a imaginação e a fabulação, e também se supera a fim de concentrar-se no objeto e ver o sujeito como criação.

O fato de Nirlando ter intercalado a sua autobiografia à narrativa biográfica do avô paterno, num jogo que mescla as duas trajetórias e as eleva até um campo de grande generalidade, leva-me a repetir Candido a respeito de Nava: “E assim o Narrador imprime força ao seu relato, na medida em que garante tanto o encanto particular do pitoresco, quanto a exemplaridade das situações”. A marca da literatura é “a relação reversível Particular – Universal”, “Realidade – Invenção”.

Ao contar sua vida, que cresce luminosa até alcançar a plenitude de um trágico fenômeno, do qual se origina a narrativa, Nirlando Beirão decidiu entrecruzá-la com a do avô, cujo drama pessoal, só mais tarde apreendido e compreendido pelo neto, é compartilhado no itinerário comum da perda e da angústia, do prazer e da perplexidade, da dor e do fim. Jornalista, e um dos melhores do país, ele procurara, antes, deslindar um enigma familiar. A doença incurável, no entanto, provocou a junção das duas metas, e o biógrafo reportou-se a si mesmo, na companhia solidária do ancestral. Ambos caminham pelo labirinto de revelações. Nirlando, no “duvidoso privilégio de chorar todos os dias a própria morte”; o avô, enfim reconciliado consigo e com o clã pela certeza da verdade. Nada, porém, deixa de revestir-se de humor e ironia, graça e espírito. Recorro a Drauzio Varella, que vê no resultado da jornada “uma reflexão profunda sobre o significado e a fragilidade da existência humana”. Uma obra viva e contemporânea renova e revigora o gênero autobiográfico, ao conferir ao autor a senha que o consagra na literatura. 

Antonio Candido terminou seu ensaio com a citação de um outro mineiro, raramente lembrado, porém de fundamental importância na poesia brasileira: Emílio Moura. Como não evocá-lo de novo? Em “Permanência da Poesia”, está escrito: (…) “A beleza é eterna. A poesia é eterna./ A liberdade é eterna./ Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.// As horas passam, os homens caem,/ a poesia fica.// Aproxima-te e escuta./ Há uma voz na noite!// Olha: há uma luz na noite!”.

Referências

“Meus começos e meu fim”, Nirlando Beirão, Companhia das Letras, São Paulo, SP, 2019.

“A Autobiografia Poética e Ficcional na Literatura de Minas”, Antonio Candido de Melo e Sousa, IV Seminário de Estudos Mineiros, Edições do Cinquentenário da UFMG, Volume I, Imprensa Universitária, Belo Horizonte, MG, 1977.