Os jornais e emissoras de televisão noticiaram dias atrás a compra de uma motocicleta pelo presidente Bolsonaro. E sempre com o estardalhaço que envolve as atitudes cotidianas do nosso governante, ainda mais em se tratando de um fato da vida pessoal tornado público de caso pensado pelos rapazes da propaganda oficial. É bom que assim seja, mesmo que o fato esteja ornado do objetivo midiático. Quanto maior a visibilidade na vida pessoal do príncipe, melhor para os súditos. É salutar à democracia que o presidente se mostre como é: bebe água de coco na tendinha da praia carioca; recebe no Alvorada, de chinelos e camiseta do Flamengo, a nova ministra da Cultura; xinga de feia a mulher do presidente da França; endossa a anedota do japonês de pinto deficitário etc. Melhor o príncipe desnudar-se a ocultar ao eleitorado o seu verdadeiro ser. Bolsonaro, neste aspecto, inova positivamente a galeria dos nossos presidentes.

Mas quero falar é de motocicleta. E nesta matéria, Bolsonaro não inovou: o general João Figueiredo, que nos governou de 1979 a 1985, tem a primazia presidencial de ter sido um feliz proprietário de motocicleta. A dele era muito mais cara do que a Honda adquirida pelo capitão, por exatos R$ 33.980,00, numa concessionária do Setor de Indústria de Brasília. Não é uma quantia considerável, ou melhor, é uma quantia acessível até mesmo à classe média-baixa nos padrões de consumo atuais. Não me acode qual a marca da moto de João Figueiredo, mas guardo a lembrança de ser uma bela máquina, maior, mais possante e mais fulgurante do que a de Bolsonaro. Talvez saiba descrever esses detalhes o jornalista Alexandre Garcia, que pautou para a revista Manchete, onde então trabalhava, uma reportagem sensacional estampada com uma foto de página inteira do “João sem medo” pilotando o bólido, de sunga, no Eixão Norte. Êta João Figueiredo! Nunca mais veremos um igual, só assemelhado, como o capitão que nos governa e possui o mesmo simpático tutano de doido do João, mas é deficitário dos atributos de quem foi “tríplice coroado”, a mais alta cotação de um oficial na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. E olha que o João era da Cavalaria, a arma desprezada pelas elites da caserna moderna, ao passo que o Jair é oriundo da Artilharia, sede da inteligentzia castrense brasileira.

A revista americana Seleções do Reader´s Digest, muito lida pela juventude da minha geração, publicava uma seção intitulada “Meu tipo inesquecível”. Era assinada por jornalistas e escritores famosos. O biografado era escolhido não pela sua importância política, social, militar, ou por ter cometido façanhas de qualquer espécie ou pela amizade que o biógrafo lhe dedicava. Era escolhido por ser exatamente um tipo humano inesquecível. Podia ser um jardineiro do Maine, um bar-man de New York, um cobrador de bonde de San Francisco. Desde que imprimisse na vida a sua marca pessoal. O meu tipo inesquecível, como aliás já contei aqui no Cláudio Humberto, é o João Figueiredo, que por acaso veio a sentar-se na cadeira presidencial e pilotava uma moto pelas avenidas de Brasília, às vezes à noite e escondido da sua segurança. Doido varrido. Infelizmente a pertinaz doença na coluna impediu que ele prosseguisse nestas reinações, como o impediria também de montar os seus cavalos tão amados.

Guardo outra lembrança de uma motocicleta na vida política, registrada, acho, num dos livros de memórias de Afonso Arinos de Melo Franco. O personagem não era motoqueiro, mas passageiro. Tratava-se do deputado Último de Carvalho, do PSD mineiro. Embora de partido adversário da UDN, de Afonso Arinos, Último de Carvalho mantinha boas relações pessoais com aquele líder da Oposição. Na noite de 2 de dezembro de 1959 os céus do Brasil começaram a viver a rocambolesca subversão de alguns poucos aviadores da FAB na aventura conhecida como a Revolta de Aragarças. Para humilhar o terrorismo do Oriente Médio, o Brasil ostenta desde aquela data a ocorrência do primeiro sequestro de um avião comercial no mundo: um Constellation da Panair tomado pelos oficiais revoltosos e depois entrincheirados naquela cidade do remoto sertão goiano. Afonso Arinos condenou firmemente a ação dos rebeldes que imaginavam contar com o apoio da UDN no Congresso para depor o presidente JK. Erraram feio, os subversivos. Afonso tinha como elemento de ligação com JK, neste episódio, o deputado governista Último de Carvalho. Certa noite, Último havia ido conferenciar com o presidente no Palácio do Catete para lhe dar a posição da UDN e receber de Juscelino as considerações sobre a sábia atitude da UDN e transmiti-las a Afonso Arinos. Sempre gentil, o presidente saiu de seus cuidados e fez questão de tomar o elevador para acompanhar o deputado até o pátio interno do Catete, onde certamente estaria estacionado o automóvel de seu interlocutor. Mas Último havia chegado para o encontro de táxi, certamente por discrição política. Mineiro é danado para despistar. Ao saber disso, o presidente ordenou
que o levassem num carro oficial. Acreditem: não havia nenhum no pátio. Mas o deputado olhou para um lado e viu uma motocicleta, daquelas dotadas de sidecar, a canoazinha acoplada do lado direito da moto com assento para um só passageiro. Vemos esses veículos militares em filmes da Segunda Guerra. Diante de um sorridente JK, Último de Carvalho aboletou-se no sidecar e, com a urgência que a mensagem presidencial requeria para chegar ao destinatário, o deputado ordenou ao motociclista do Batalhão da Guarda Presidencial:

– Toca para Copacabana!

A urgência da mensagem secreta de JK para Afonso Arinos no caso de Aragarças é relevante, mas a mais urgente e muito mais importante corrida de uma motocicleta para o Brasil, ou pelo menos para a História Militar do Brasil, ocorreu muitos anos antes. Seu protagonista foi o jovem Alberto Martins Torres, civil comissionado como 2º. tenente-aviador na recém-criada Força Aérea Brasileira que se preparava para enviar um esquadrão de voluntários denominado Senta a Pua! para combater nos céus do norte da Itália então sob domínio nazista. O dia 23 de julho de 1943 amanheceu ensolarado, convidativo a um banho de mar. A cidade do Rio de Janeiro era tão silenciosa que se escutava o que a empregada, da janela da casa de Betinho, na Avenida Vieira Souto, transmitia num grito ao jovem cheio de vida sentado na pedra do Arpoador.

– Betinho! Corre aqui! Telefone urgente do Galeão!

Betinho correu para atender a chamada. Pediam-lhe que se apresentasse urgentemente ao esquadrão, baseado na Ilha do Governador. Ele montou na sua possante Harlley-Davidson e chispou, mais veloz do que o bombardeiro de patrulha Catalina com o qual, duas horas depois, pôs a pique o submarino alemão de prefixo U-199 avistado a 50 milhas ao sul do Pão de Açúcar. Foi o único submarino nazista comprovadamente afundado por brasileiros. Guerreiro generoso, o piloto ordenou aos seus tripulantes que atirassem salva-vidas para os marujos alemães que se safaram da sua mira certeira.

Na Itália, Betinho foi o integrante do Senta a Pua! que cumpriu o maior número de missões de combate: exatas 100. Por esses feitos, é considerado o maior ás da FAB. Em 1955, o carioca Betinho, já plenamente integrado à vida civil, e seu colega mineiro no Senta a Pua!, Milton Prates, outro civil que se alistara como voluntário na FAB, foram convocados por Juscelino para pilotarem o DC-3 que fez as viagens da campanha vitoriosa de JK à Presidência da República.

Meu amigo Betinho foi condecorado até pelos Exércitos dos Estados Unidos e da França Livre após a guerra. Mas o grande feito dele merecia mesmo era uma medalha do Tribunal de Contas do Brasil: zeloso com o bem público que o contribuinte brasileiro depositou em suas mãos, um caça P-47 Thunderbolt, Betinho voltou da guerra com o avião intacto. Um tipo inesquecível, o sempre jovial Alberto Martins Torres (1919-2001). Suas cinzas foram espargidas de um avião da FAB sobre o mar na altura de Ipanema, de onde chispara com sua motocicleta para alcançar o submarino alemão.

 

Por Pedro Rogério Couto Moreira, membro da Academia Mineira de Letras, ocupante da cadeira n° 38.