Minas Gerais nasceu há 300 anos. O ato da criação da capitania foi assinado em 2 de dezembro de 1720 por D. João V, rei de Portugal. Essa decisão vinha na sequência de outra, de novembro de 1709, quando havia sido criada a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, separada então da Capitania do Rio de Janeiro. Basta considerar a proximidade dessas datas em que o território da colônia portuguesa na América é redesenhado para perceber a preocupação com a região das minas, de onde, apenas em 1720, foram enviados para Lisboa nada menos que 25 mil quilos de ouro.

Desde os poucos mais de 20 anos que mediam entre o descobrimento das primeiras jazidas pelos paulistas, em fins do século anterior, até a criação da capitania, marcaram o nascimento de Minas Gerais enormes e rápidos deslocamentos de pessoas, procedentes de São Paulo, do sertão da Bahia e de outros pontos do Brasil, de Portugal e da África, sem falar das populações indígenas sucessivamente desalojadas de seus locais de residência. Fossem ou não mineradores, todos acabaram chamados de mineiros, como continuamos a nos chamar, denominação que carrega consigo toda a ambiguidade das riquezas passageiras, que nestes três séculos não pararam de transformar vilas ricas e vilas pobres e vice-versa, no ritmo da força da grana que ergue e destrói coisas belas.

É de se esperar que haja comemorações da data, como as que prevê o Instituto Histórico e Geográfico. O importante nessas ocasiões é não perder de vista a diversidade de perspectivas, ou seja, que os mesmos fatos não implicam as mesmas coisas para todos. Foi disso que se descurou no caso dos 500 anos de descobrimento do Brasil, levando a situações como a festa em Porto Seguro: enquanto governo e elites brindavam em espaço fechado, indígenas e movimentos sociais, do lado de fora, clamavam não haver nada que comemorar.

No caso de Minas não será diferente. Se há esse ponto em comum de sermos todos (há 300 anos!) mineiros, com essa herança comum nos vêm, como em qualquer herança, bens e males. A questão está, portanto, em saber escolher. As coisas belas estão aí para todos verem, algumas delas marcadas com o selo de Patrimônio da Humanidade. O que há de vergonhoso nessa herança também é preciso dar a ver: antes de tudo mais, a violência da escravidão e a degradação da natureza em que marcaram a exploração de nossas riquezas minerais, o que continua sob a roupagem de desigualdades sociais, destruição de nosso patrimônio e corrupção. As tragédias recentes de Mariana e Brumadinho servem de alerta contra qualquer tentação para celebrações ufanistas.

Isso não quer dizer que não há o que celebrar. E há muito. É questão de fazer as escolhas. Com essa perspectiva, o BDMG Cultural, por iniciativa de seu presidente anterior, Rogério Faria Tavares, a que deu competente continuidade a presidente atual, Gabriela Moulin, acaba de publicar o livro “Literatura mineira: trezentos anos”, que me coube organizar. Na lógica dos números, aos 300 anos correspondem 30 ensaios assinados por pesquisadores jovens e já consagrados, dedicados a aspectos variados da literatura produzida por escritores mineiros. Isso constitui um testemunho da experiência ímpar que em Minas se viveu e ainda se vive (entre todas as imparidades que formam o Brasil), abrangendo todas as Minas (não só a do minério) e todas as Gerais, na direção de cada ponto cardeal, até onde a cultura e os falares dos mineiros se confundem com os de baianos, goianos, paulistas, fluminenses e capixabas.

O livro divide-se em duas partes, a primeira dedicada a aspectos variados da literatura mineira, a segunda, a alguns de seus autores mais representativos. Assim, na primeira, encontram-se estudos sobre a literatura aparecida em jornais e o caso do Suplemento literário, a literatura de autoria feminina, as falas do negro na literatura de Minas, contistas e cronistas mineiros, a literatura marginal, o romance, a literatura indígena, a poesia contemporânea, a produção moderna, a poesia colonial, o teatro dos primeiros séculos, a literatura erótica, a literatura infanto-juvenil e a crítica literária. Na seção dedicada a autores, estudam-se as obras de Conceição Evaristo, Lúcio Cardoso, Cláudio Manuel da Costa, Alphonsus de Guimaraens, Pedro Nava, Murilo Rubião, Adélia Prado, Bernardo Guimarães, Henriqueta Lisboa, Júlio Ribeiro, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Herculano Lopes e Murilo Mendes.

Mesmo que não se tenha a pretensão de uma abordagem exaustiva, o que seria impossível, o índice dos autores referidos registra cerca de 1000 nomes, desde a época colonial até os dias de hoje. Em resumo: trata-se, portanto, de um amplo painel, em que a pujança da literatura mineira fica demonstrada.

Para conhecimento do leitor, reproduzo aqui a lista de estudos e seus autores. Quem se interessar, deve dirigir-se ao BDMG Cultural (www.bdmgcultural.mg.gov.br):

Os grupos literários e a era do Suplemento – Ângelo Oswaldo de Araújo Santos
Escritoras mineiras presentes! Anotações críticas – Constância Lima Duarte e Maria do
Rosário Pereira
Falas do negro na literatura de Minas – Eduardo Assis Duarte
Contistas – Eliana da Conceição Tolentino
Os bens e o sangue: o romance em Minas entre mobilidade e imobilismo – Emílio
Maciel
Modernismo revisitado – Eneida Maria de Sousa
A crônica mineira – Fabrício Marques
Minas Gerais: de territórios e margens da literatura – Ivete Lara Walty
O romance de geração na literatura de Minas Gerais – João Antônio de Paula
Um teatro de formas híbridas: a cena teatral em Minas no século XVIII – Leda Martins
O erotismo das minas e o feminino de ninguém – Lúcia Castello Branco
Cantores de leitura: apontamentos sobre literatura indígena em Minas Gerais – Maria
Inês de Almeida
Crítica literária – Nabil Araujo
“Evadir-se com o outro”: a literatura infanto-juvenil e a lição de Bartolomeu Campos de
Queirós – Paulo Fonseca Andrade
Poesia de Minas sempre contemporânea – Raquel Beatriz Junqueira Guimarães
Capitania de letras gerais – Sérgio Alcides Pereira do Amaral
A escrivivência de Conceição Evaristo – Aline Arruda
Lúcio Cardoso: um andarilho à beira do abismo – Andréa de Paula Xavier Vilela
Cláudio Manuel da Costa, poeta das Minas Gerais – Andréa Sirihal Werkema
História e solidão: Alphonsus de Guimaraens – Anelito de Oliveira
A subversão barroca e outras subversões nas memórias de Pedro Nava – Antônio Sérgio
Bueno
No creo en brujas, pero que las hay, las hay: a propósito da vida e obra de Murilo
Rubião – Audemaro Taranto Goulart

O demônio da tristeza e a vontade da alegria: considerações sobre a literatura de Adélia
Prado – Cláudia Campos Soares
Bernardo Guimarães: um projeto de nação – Daniela Magalhães da Silveira
Henriqueta Lisboa: para além das páginas impressas – Kelen Benfenati Paiva
Júlio Ribeiro e a luta das ideias – Marcos Rogério Cordeiro
Guimarães Rosa: vida e obra nos alinhavos da linguagem – Márcia Marques de Morais
O sentimento de origem na poesia de Carlos Drummond de Andrade – Mário Alex Rosa
Carlos Herculano Lopes em quatro tempos – Telma Borges

(Publicado em www.bhaz.com.br, em 17 de janeiro de 2020)